Dr. Eduardo José da Fonseca Costa

O «FIM DA HISTÓRIA» NA CIÊNCIA PROCESSUAL

É comum a processualística brasileira ser menos scientia que eloquentia. Frequentemente, ela se apodera de teorias extrajurídicas para justificar posições pretensamente dogmáticas. Um exemplo é a invocação subliminar da «teoria do fim da história», iniciada no século XIX por HEGEL e retomada no século XX por FUKUYAMA. De acordo com essa teoria, os processos de mudança histórica, após atingirem determinado equilíbrio, rumariam ininterruptamente para um finis ultimus e, portanto, para uma estabilidade plena.

É comum a processualística brasileira ser menos scientia que eloquentia. Frequentemente, ela se apodera de teorias extrajurídicas para justificar posições pretensamente dogmáticas. Um exemplo é a invocação subliminar da «teoria do fim da história», iniciada no século XIX por HEGEL e retomada no século XX por FUKUYAMA. De acordo com essa teoria, os processos de mudança histórica, após atingirem determinado equilíbrio, rumariam ininterruptamente para um finis ultimus e, portanto, para uma estabilidade plena. Ou seja, o passado histórico seria modelado nos moldes de uma mudança teleológica. No âmbito específico do direito processual, isso significa que, após a «destruição» de duas ou mais correntes metodológicas antagônicas entre si, a ciência processual atingiria o seu ponto culminante de maturidade pelo triunfo de uma «terza via inedita». Essa terceira opção pós-histórica - que estaria acima das «etapas metodológicas ultrapassadas» - as superaria por «desprezo» [Überwindung], ou por «síntese superior» [Aufhebung]. Ela as varreria do cenário acadêmico pela força evolutiva irresistível dos seus próprios princípios. Seria ela o «apogeu» ou o «coroamento» da história do pensamento jurídico processual mediante o advento de uma «doutrina final». Essa doutrina seria afortunada porque a sucessão das diferentes fases metodológicas (praxismo, processualismo científico, instrumentalismo, formalismo valorativo etc.) obedeceria a uma direção causada pelo progresso cumulativo do conhecimento processualístico. Tudo se passaria como se a ciência processual trilhasse um caminho natural até um estágio derradeiro insuperável. Ele seria o nec plus ultra, o nothing further beyond, o fin du fin da evolução científico-processual. Isso explica, em boa parte, por que esses juristas não se interessam muito pela história dos institutos processuais: o passado tem uma energia estagnante e é apenas uma «jazida de fósseis» [Fossil-Lagerstätte], um depósito de primitivismos descartáveis com cujos erros se deve aprender só para se evitar a repetição dos insucessos pretéritos. Daí por que esses juristas têm uma teoria historiológica, mas paradoxalmente uma aversão à historiografia. Noutros termos, eles têm uma teoria sobre a história sem historiação. No entanto, como não poderia deixar de ser, a instrumentalização da «teoria do fim da história» não é confessada por esses processualistas. Eles vendem essa causa finalis como uma obviedade, uma autoevidência, que prescinde de explicações. Nenhuma elucidação historiológica, meta-histórica, filosófico-histórica ou historiosófica é prestada ao leitor. Com isso, tentam incutir a ideia de que: 1) eles próprios seriam «modernos», «atuais», «contemporâneos», «arejados», «vencedores», «adiantados», «otimistas», «desenvolvidos», «esclarecidos», «progressistas»; 2) os adeptos das demais correntes seriam «atrasados», «velhos», «superados», «derrotados», «retardatários», «retrógrados», «pessimistas», «subdesenvolvidos», «ignorantes», «reacionários». Por esse ângulo, haveria apenas um temporário lag ou delay entre os modelos «avançados» que eles adotam e os modelos «antiquados» abraçados pelos demais. No final das contas, eles já teriam sido escolhidos pela história e, em consequência, as suas teorias estariam fadadas à aclamação.

Um helpful example de finalismo histórico-processual é o instrumentalismo. Não raro, os seus adeptos se apegam à ideia de que o mundo caminha fatalmente para o fortalecimento do Estado e, portanto, para o aumento triunfal dos poderes do juiz. Tudo bem ao gosto de HEGEL, para quem «o indivíduo mesmo tem objetividade, verdade e ética somente como membro do Estado, pois o Estado é Espírito objetivo» (Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 258) (sobre o hegelianismo na ciência processual: CROSKEY, Sebastián Irún. Derecho procesal e ideología: Hegel y el origen de da escuela «moderna» de derecho procesal (o del «activismo judicial»). Assunção: La Ley, 2011). A história do processualística seria, assim, uma progressão gradual inevitável da «pré-história» para o «fim da história», da «ancestralidade» para a «modernidade», da «pré-cientificidade» para a «cientificidade», do «privatismo» para a «publicismo» (cf., p. ex., AUILO, Rafael Stefanini. O modelo cooperativo de processo civil... São Paulo: USP [dissertação de mestrado], 2014, p. 46: «A superação das concepções privatísticas levou à moderna concepção do processo como instrumento que o Estado utiliza precipuamente para o alcance de objetivos públicos, e não somente como uma ferramenta de livre disposição das partes litigantes») (d. n.). No mesmo sentido JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE: «Superada hoje a corrente que considera como objeto do processo a defesa de direitos subjetivos, pois resulta de uma análise privatista do fenômeno. Sua finalidade é a atuação do direito objetivo, sendo a proteção dos direitos subjetivos uma consequência natural» (Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 68) (d. n.). Como se nota, uma palavra dourada forma o canto mântrico da doutrina instrumentalista: superação. A concepção publicista «superaria» a concepção privatista, visto que a sobrepujaria, seria mais importante, revelaria mais qualidade, seria mais evoluída. Por isso, a concepção privatista estaria fadada ao apagamento, à extinção, ao ostracismo. Enfim, o publicismo seria o «destino final», o «desígnio salvífico», o «fim definitivo», a «terminação», a «consumação», a «conclusão» de uma processualística plena e verdadeira. Desse modo, o instrumentalismo se impregna de ideologias autoritárias de tipo socialista-fascista, que profetizam a «grande máquina do Estado» como ultimus finis et summum bonum, trabalhando com a chamada «associação inconsciente»: 1) demonizam o duo «privado-liberal», associando-o a inferioridade, desumanização, desequilíbrio, conturbação social, antiguidade, mesquinhez, desigualdade, competição, mentira, injustiça, egoísmo, individualismo; 2) divinizam o duo «público-social», associando-o a superioridade, humanização, equilíbrio, pacificação social, modernidade, altivez, igualdade, cooperação, verdade, justiça, altruísmo, coletivismo; 3) infundem a crença de que o processo caminha «evolutivamente» de uma «concepção privatista (primitiva)» para uma «concepção publicista (civilizada)» (para um aprofundamento do tema, v. nosso Garantismo, liberalismo e neoprivatismo. <https://cutt.ly/pjUHwMW>). Tudo isso não passa, porém, de um resto impertinente e laicizado de escatologia religiosa, que precisa ser expulso da razão jurídico-processual. Uma crendice irracional, que infesta a psique dos instrumentalistas pela fenda sutil do inconsciente.

Muitas vezes os cooperativistas - uma versão rósea dos instrumentalistas - também usam esse tipo de retórica mistificada. Em geral, apresentam a sua doutrina mediante textos divididos em três partes. Na primeira, eles explicam o «modelo tradicional adversarial». Na segunda, explicam o «modelo tradicional inquisitorial». Na terceira, dedicam-se ao clímax expositivo: o modelo contemporâneo cooperativo», «uma terceira espécie, que supera os modelos tradicionais [...], pois o processo deixa de ser dirigido pela vontade das partes, mas também não é conduzido pelo órgão jurisdicional de maneira inquisitorial, ou seja, é um processo sem protagonismos, devendo-nos sujeitos colaborarem uns com os outros, em ambiente de cooperação, na busca da resposta jurisdicional adequada» (NEVES, Fabiana Junqueira Tamaoki, ISOGAI, Stephanie Karoline Maioli e GODOY, Sandro Marcos. O princípio da cooperação como norma fundamental do processo civil e seus reflexos na arbitragem. <https://cutt.ly/fjv9zRk>) (d. n.). Em grande medida, as visões do cooperativismo como «superação histórica» da luta adversarialismo versus inquisitivismo se escoram em um famoso texto de FREDIE DIDIER JR. (Os três modelos de direito processual: inquisitivo, dispositivo e cooperativo. <https://cutt.ly/YjbuLGB>). É bem verdade que o professor baiano não usa a palavra «superação». Todavia, refere-se a adversarialismo e inquisitivismo como «tradicionais». Mais: fala do cooperativismo como «o mais adequado para uma democracia». Assim, sugere o cooperativismo como um modelo não tradicional e, portanto, «contemporâneo», «avançado», «moderno». Enfim, longe de equivaler entre si os modelos adversarial, inquisitivo e cooperativo, como se fossem igualmente optáveis por razões puramente «técnicas», com sutileza FREDIE os hierarquiza. Ora, essa fórmula tese-antítese-síntese é uma velha conhecida do centro-esquerdismo social-democrata, do qual o cooperativismo processual é uma expressão bastante particularizada. A social-democracia se vende como uma «terceira via radical» para além do liberalismo e do socialismo, que seriam modelos defeituosos superáveis por um «socialismo ético», um «capitalismo humanizado», uma «competição moralizada», marcada por justiça social e por um equilíbrio entre uma economia de mercado espontânea e uma intervenção estatal tecnocrata. Pois que o cooperativismo processual se vende exatamente da mesma forma: como uma «doutrina jurídica final» para além de um adversarialismo e de um inquisitivismo ultrapassados, que seriam modelos obsoletos superáveis por uma «comunidade leal de trabalho entre todos os sujeitos do processo», marcada por um equilíbrio entre juiz e partes, sem que entre eles haja qualquer protagonismo. Para tanto, o juiz é visto como um «amigo», capaz de coordenar o agir cooperativo dos demais sujeitos processuais «para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva». Nesse sentido, o juiz comporia uma «mandarinato iluminista», cujas «cutucadas técnicas» [nudges] conduziriam as partes a uma condição de litigância mais «racional» e, por conseguinte, mais «avançada». O juiz aceleraria um movimento teleológico, fazendo com que as partes evoluam progressivamente para uma capacidade de diálogo colaborativo, desimpedido e sincero, sem as estratégias manipulatório-instrumentais próprias ao contraditório febril.

Ao fim e ao cabo, as teorias instrumentalista e cooperativista carregam resquícios de um pensamento tribal mágico e supersticioso, tendo em vista que tenta expressar e profetizar fenômenos reais a partir de forças ocultas irreais, que conduziriam a realidade a um alvo, a um telos, a uma sorte predestinada. Transplantadas para o âmbito jurídico, essas teorias operam como uma «nuvem espessa de fumaça», que procura ofuscar a ideia do processo como garantia e fazer crer que o sentido da história do processo é a sua apropriação instrumental pelo Estado, ou a sua transmudação numa «comunidade moralizada de trabalho». Lembre-se que a instituição do processo - o «devido processo legal» - é objeto de um direito subjetivo de liberdade em face do Poder Público [CF, art. 5º, LIV] e, por isso, é uma garantia de proteção contra-arbitrária em favor dos indivíduos. Nessa perspectiva, o processo tem natureza político-liberal ex vi constitutionis. É uma manifestação do liberalismo político institucionalizada pela própria Constituição. A expressão «Estado Democrático» é elíptica. O Estado Democrático não suprime o Estado Social; por sua vez, o Estado Social não suprime o Estado Liberal. Em verdade, Estado Democrático = Estado Liberal + Social + Democrático. Os adjetivos se justapõem segundo uma sequência geracional. Dentro dessa sequência, o processo se radica na primeira geração. Radica-se, enfim, na dimensão liberal - e, portanto, fundacional - do Estado Democrático. Não lhe cabe igualar materialmente as partes a qualquer preço e à margem da lei (como quer o processualismo social); tampouco serve como fator de legitimação democrática das decisões do Estado (como quer o processualismo democrático). Com efeito, o processo é um direito fundamental de primeira geração ou dimensão, que se liga ao valor liberdade e que protege os cidadãos dos eventuais arbítrios estatais. Não sem motivo o processo está previsto em um dos incisos do artigo 5º da CF/1988, que integra o Capítulo I do Título II («Dos direitos e deveres individuais e coletivos») (sem razão ZANETI JR., Hermes. O Ministério Público e as normas fundamentais... Revista do MPRJ. n. 68, p. 184-185: «O modelo de processo dispositivo corresponde ao Estado Liberal; o modelo inquisitivo, ao Estado Social; e o modelo cooperativo, ao Estado Democrático Constitucional»). A recente abertura garantista para esse novo horizonte demonstra que a história do processo não chegou ao seu fim e que as suas possibilidades cidadãs ainda estão em aberto. É evidente que nem instrumentalismo nem cooperativismo lograram transformar o processo na terra prometida da «verdade», da «justiça», da «eficiência» e da «paz social». Mesmo assim, determinadas correntes insistem em radicar o processo em dimensões que a ele são constitucionalmente estranhas, desnaturando-o de garantia para os cidadãos em instrumento do Estado. Em outras palavras, procuram encobrir o processo com um astucioso manto não-, extra-, pseudo- ou anti-liberal. Em artigo anterior, expliquei que são «muitas as correntes dogmáticas desencaminhadas, que inconfessadamente desenraízam o processo da Constituição e o envolvem em sobrecargas inconvenientes, esfumaçando-lhe seu ser constitucional e, portanto, sua institucionalidade garantística» (O processo como instituição de garantia. <https://cutt.ly/3jOd1vJ>). Uma dessas sobrecargas é a teoria do fim da história, da qual se tem feito um uso dogmático sub-reptício.

Compartilhe:

Compartilhar no Facebook Compartilhar no Linkedin Compartilhar no Whatsapp

Redes Sociais

Lattes

Todos os direitos reservados.