A ANGÚSTIA NOMENCLATURAL DOS GARANTISTAS
É preciso reconhecer: a expressão garantismo processual sempre desagradou seus adeptos. De fato, há algo nela de inadequado.
«That which we call a rose/
By any other name would smell as sweet.»
(Shakespeare)
É preciso reconhecer: a expressão garantismo processual sempre desagradou seus adeptos. De fato, há algo nela de inadequado. Muitas vezes, a doutrina que professam é confundida com o garantismo de Luigi Ferrajoli, que é uma teoria zetética da garantia como uma tutela contra a inefetividade de normas [= plano do direito objetivo] e, por conseguinte, contra a insatisfação de pretensões [= plano do direito subjetivo]. Nada tem a ver, portanto, como o garantismo processual, o qual parte de uma teoria dogmático-constitucional da garantia como uma tutela contra o arbítrio estatal. É inegável que, no léxico das línguas neolatinas em geral, a palavra garantir tem dois blocos semânticos e, por isso, significa ora «proteger contra a insatisfação», ora «proteger contra o arbítrio». No entanto, haja vista que o garantismo ferrajoliano é um modelo teórico mais antigo e famoso, é mais fácil confundir-se o garantismo não ferrajoliano com ele (para uma distinção entre as duas teorias, v. nosso Garantia: dois sentidos, duas teorias. <https://encurtador.com.br/0hjHZ>).
Outro inconveniente é o uso do sufixo –ismo na palavra garantismo. Afinal, não se trata de um bom determinante semântico. Por meio dele se podem exprimir muitas coisas: ideologias [v. g., conservadorismo, liberalismo]; esportes [v. g., atletismo, hipismo]; preconceitos [v. g., racismo, antissemitismo]; religiões [v. g., catolicismo, islamismo]; enfermidades [v. g., raquitismo, gigantismo]; modos de existir [v. g., egoísmo, altruísmo]; etc. Devido a isso, a expressão «garantismo» não revela a sua abordagem metodológica, nem o seu estatuto epistemológico. Sendo assim, propus que se usasse doravante a expressão garantística, pois o sufixo «-ística» expressa a ideia tanto de ciência em geral (linguística, estilística, criminalística, estatística, balística, atomística, heurística etc.) quanto de dogmática jurídica em particular (civilística, tributarística, penalística, processualística etc.) (para um aprofundamento, v. nosso Garantismo ou Garantística?. <https://encurtador.com.br/6wuvb>).
Nada obstante, a nova expressão também tem problemas. Em tese, nada impede que a teoria zetética ferrajoliana seja transformada em uma teoria dogmática processual. Desprezando-se o regime constitucional do processo como um direito subjetivo fundamental de liberdade [CF/1988, art. 5º, LIV], pode-se afirmar – e, não raro, afirma-se – que processo é garantia, que garantia é «tutela contra insatisfação» e, como resultado, que a função do processo é a «tutela de direitos». Nota-se, destarte, que a expressão garantística processual pode ser in thesi capturada pelos ferrajolianos. Para tanto, eles se valem de uma saída pseudoconstitucional, asseverando que: 1) os direitos fundamentais são «estados ideais de coisas»; 2) a cláusula do devido processo legal expressa o ideal do «processo justo»; 3) o processo é «justo» se satisfaz direitos de maneira efetiva e célere; 4) a efetivação ágil de direitos só é possível municiando-se o juiz de amplos poderes instrumentais. Indo contra o sentido histórico dos direitos fundamentais, o ferrajolianismo os desnatura de limitadores em «incrementadores do poder».
Quiçá uma expressão mais imune a investidas autoritárias se radique na teoria alemã liberal dos direitos fundamentais [Bernhard Schlink, Bodo Pieroth, Ralf Poscher, Thorsten Kingreen, Ernst-Wofgang Böckenförde etc.), que os trata como «direitos de defesa dos cidadãos contra o Estado» [Abwehrrechte des Bürgers gegen den Staat]. Sob essa perspectiva, o processo em si mesmo – o «devido processo legal» – é uma defesa [Abwehr] dos cidadãos contra os eventuais arbítrios estatais. No jargão jurídico alemão, o termo Abwehr quer dizer, justamente, «defesa, preservação, proteção, resistência», integrando formações como Abwehraktion («ação defensiva»), Abwehrstreik («greve defensiva») e Abwehrzölle («direitos aduaneiros defensivos ou de retorsão») (cf. RAMOS, Silveira. Dicionário jurídico alemão-português. Coimbra: Almedina, 1995, p. 20). Como se vê, existe fortíssima sinonímia entre o termo «defesa» [Abwehr] dos teóricos liberais alemães e o termo «garantia» dos garantistas não ferrajolianos. Logo, não seria inapropriado substituir «garantística» por defensística.
Proteção também seria ponto de partida para se construir uma outra expressão, desde que se tome o termo como sinônimo de anteparo, refúgio, guarita, trincheira, muro, barreira ou escudo. Dessa forma, «garantística» poderia dar a lugar a protecionística. Por esse ângulo, o processo tem função prostática. Próstata vem do grego προστάτης [= προς + στάσις = «à frente» + «estar»], designando «aquele que está à frente», «protetor», guarda» ou «guardião». Estudos etimológicos mostram que, na medicina grega antiga, a glândula urogenital masculina jamais foi chamada de próstata/προστάτης (que fica à frente da bexiga, estacionada como um guarda diante dela), mas de parastata/παραστάτης («que está ao lado», «que apoia», que se agrega ou rodeia a uretra superior e o colo da bexiga) (cf. <https://etimologias.dechile.net/?pro.stata>). Seja como for, o processo é προστάτης, visto que, indo à frente das partes, se interpõe entre elas e o Estado-juiz, protegendo-as dele. Daí por que a garantística poderia também ser chamada de prostática ou algo similar. Resta saber se ela está disposta a ver o seu objeto de estudos associado (jocosamente) a uma glândula…
Ante essas considerações, é necessário decidir se vale a pena descartarem-se, a essa altura do jogo, nomes como «garantismo processual» e «garantística processual». A mim me parece que não. Eles já são repetidos há décadas no Brasil, na América Espanhola e na Península Ibérica. Ainda que alguma inadequação exista neles, consagraram-se pelo uso. Assim, é mais difícil emplacar novos nomes do que ressalvar os velhos uma vez por outra. Pelos motivos que já expus, garantística processual é preferível a «garantismo processual». Sem embargo, a segunda expressão é muito mais difundida que a primeira. No final das contas, é bastante provável que os garantistas continuem tendo de explicar que, para eles, garantia é tutela contra o arbítrio estatal e que garantismo processual é a dogmática constitucional do processo (do due process of law) como garantia do cidadão. Diz-se, em uma famosa canção portuguesa, que «Alfama não cheira a fado/Mas não tem outra canção». Talvez nada cheire a garantismo, embora falte um nome melhor. Por ora, ele segue como um «eterno interino».


