Dr. Eduardo José da Fonseca Costa

ANIMAL, NASCITURO E PERSONALIDADE PROCESSUAL

De acordo com o artigo 2º do Código Civil, nascer com vida é o suporte fático da regra cuja incidência constitui em favor do ser humano uma qualidade jurídica chamada personalidade civil. A personalidade nada mais é do que «a possibilidade de (se) ser sujeito de direito», razão por que, «para se ser pessoa, não é preciso que seja possível ter quaisquer direitos; basta que possa ter um direito» (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, t. I, § 47, 1).

Ao Arlito,

Com saudade

De acordo com o artigo 2º do Código Civil, nascer com vida é o suporte fático da regra cuja incidência constitui em favor do ser humano uma qualidade jurídica chamada personalidade civil. A personalidade nada mais é do que «a possibilidade de (se) ser sujeito de direito», razão por que, «para se ser pessoa, não é preciso que seja possível ter quaisquer direitos; basta que possa ter um direito» (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, t. I, § 47, 1). Por sua vez, ter personalidade civil é o suporte fático da regra jurídica cuja incidência constitui em favor do ser humano os chamados direitos de personalidade civil (vida, integridade física, honra, imagem, nome, intimidade etc.), que, «com exceção dos casos previstos em lei, […] são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária» [CC, art. 11]. Assim, há os direitos inatos, que o ser pessoa de direito civil já produz como «efeito mínimo», e os direito não inatos, «restantes», que o ser pessoa de direito civil não produz per se, mas dos quais pode tornar-se titular no curso da vida. Em outras palavras, ser pessoa é poder ser sujeito de direito, é poder estar na posição de titular de direito, é poder figurar ativamente em relação jurídica (não se podendo confundir a titularidade com o exercício, o qual pode tocar a outrem, por lei ou por ato jurídico do próprio titular). Em suma: conforme a sistemática do Código Civil, não há direito sem sujeito de direito, não há sujeito de direito sem personalidade e não há personalidade civil sem o ser humano ter nascido com vida.

Não obstante, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei da Câmara nº 27/2018, de iniciativa do Deputado Federal RICARDO IZAR (PSD/SP), que acrescenta dispositivo à Lei nº 9.605/1998 para «dispor sobre a natureza jurídica dos animais não humanos». Segundo o projeto, os animais não humanos «possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos de direitos despersonificados, dos quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa» (<https://cutt.ly/tESdjqb>) (d. n.). É importante frisar que a «descoisificação» ou dos animais não humanos é construção dogmática in fieri, que ganhou força especial com a CF/1988. Nela se institui a vedação da crueldade contra animais [art. 225, § 1º, VII: «[…] incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade»]. Perceba-se que a vedação constitui um princípio, não uma regra, pois se trata de imperativo categórico [«A deve ser»], não de imperativo hipotético-condicional [«Se A, então B deve ser»]. O dispositivo não explica o que são crueldades, nem imputa sanção caso elas ocorram. Enfim, não tem hipótese de incidência nem consequência jurídica, nem preceito primário nem preceito secundário, nem antecedente nem consequente. Isso posto, não é norma jurídica e não se aplica per saltum aos casos práticos (sobre a não normatividade dos princípios, v. nosso Princípio não é norma – 1ª parte. <https://cutt.ly/GESsmoV>).

Ainda assim, o princípio da vedação da crueldade contra animais vem sendo concretizado por meio de várias regras legais expressas. Uma delas é o artigo 32 da Lei nº 9.605/1998, que torna crime «praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos», bem como realizar «experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos». Tudo isso mostra que, apesar de ainda não se lhes conferir personalidade civil, no sistema de direito civil positivo brasileiro atual os animais não humanos já gozam de certo grau de dignidade. Habitam a zona intercalar entre as pessoas e as coisas. Têm natureza bastante peculiar, pois. Os seus «donos» (tutores? guardiões? criadores? quartum genus?) não podem fazer com eles tudo o que bem entendam. Não têm poder incontrastável sobre aquilo que é «seu». O animal não humano tem valor intrínseco e absoluto; logo, não pode servir de meio para a consecução de todo e qualquer fim estabelecido pelo homem. Não sem motivo, o projeto de lei supracitado almeja instituir uma regra que pré-exclui os animais não humanos da incidência do artigo 82 do Código Civil («São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social»). Com isso se quer corroborar a ideia de que eles não se enquadram no conceito de bens móveis.

Entretanto, cresce muito depressa a corrente doutrinário-jurisprudencial que defende de lege lata a personalidade civil dos animais não humanos. Vale menção o julgamento da Apelação nº 1000109-48.2017.8.26.0439 pela 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (rel. Desembargador José Luiz Gavião de Almeida, j. 12.12.2017). Entendeu-se que, «por força das leis que os protegem, os animais se tornaram sujeitos de direitos subjetivos e, embora não sejam considerados capazes de fazer valer esses direitos, por si sós, deve o Poder Público e a coletividade fazê-lo, como ocorre com os direitos dos juridicamente incapazes» (<https://cutt.ly/DRr5HMw>). Em geral, os tribunais que encampam essa corrente «aplicam diretamente» o princípio da vedação da crueldade contra animais. Em síntese, criam arbitrariamente – como se fossem legisladores – uma regra judicial que confere aos animais não humanos a possibilidade de serem sujeitos de direito (o que é próprio ao «Estado aristocrático-tribunalício de direito jurisprudencial», que hoje tenta destronar no Brasil o Estado democrático-parlamentar de direito legislado positivado pela CF/1988). Fazem-no movidos pela «primazia do ecocêntrico sobre o antropocêntrico». Por vezes se invoca a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, que prevê direitos titularizados pelos animais; porém, trata-se de mera recomendação aos países membros da ONU, sem força normativa, que nunca foi e jamais poderá ser incorporada pelo Brasil (para uma íntegra do documento: <https://cutt.ly/KRtwCYx>).

De todo modo, uma coisa é certa: não pode haver «sujeitos de direitos despersonificados». Trata-se de uma contraditio in terminis. Se é sujeito de direito, então é porque tem personalidade; se tem personalidade, então pode ser sujeito de direito. Quando muito se poderia afirmar que os animais domésticos e silvestres são sujeitos de direito sem personalidade civil animal humana; todavia, ter-se-ia necessariamente de afirmar que eles têm «personalidade civil animal não humana». Assim, se fosse possível falar em personalidade civil animal não humana, ter-se-ia outrossim de afirmar que essa personalidade civil se adquire desde o nascimento com vida do animal. Mais: não seria preciso que a pessoa animal não humana tivesse quaisquer direitos; bastaria que pudesse ter apenas um (que, de ordinário, se diz ser o direito de não sofrer maus tratos). Uma das várias consequências disso seria a atribuição de capacidade de ser parte processual a esses animais (cf. CPC, art. 70: «toda pessoa que se encontre no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo»). De qualquer forma, não é preciso forjar-se uma «personalidade civil animal não humana» para se forjar uma conseguinte «capacidade animal não humana de ser parte processual». Consoante o § 3º do artigo 2º do Decreto nº 24.645/1934, «os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais») (obs. 1: trata-se de decreto com força de lei, editado pelo Chefe do Poder Executivo quando fechado o Congresso Nacional; logo, não poderia ter sido revogado pelo Decreto nº 11/1991 e, por isso, se encontra em pleno vigor) (obs. 2: é evidente que essa «assistência» não faz dos animais não humanos pessoas de direito civil relativamente incapazes; na realidade, trata-se de representação em juízo ex vi legis de ente sem personalidade civil).

Como se nota, diante da conveniência para a postulação contra maus tratos, já se imputa aos animais a capacidade de ser parte em processo. É regra de iure condito. Mesmo assim, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 145/2021, de iniciativa do Deputado Federal EDUARDO COSTA (PTB/PA), que visa alterar o Código de Processo Civil «para permitir que animais não-humanos possam ser, individualmente, parte em processos judiciais, sendo representados pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, por associações de proteção dos animais ou por quem detenha sua tutela ou guarda» (<https://cutt.ly/SEDI0EM>). A alteração é benfazeja, seja porque amplia o rol de representantes possíveis (os custodes animalium), seja porque elimina a confusão da representação com a assistência. Sem embargo, conferir aos animais não humanos a capacidade de figurar em um dos polos da relação jurídica processual não implica conferir-lhes personalidade civil. Conquanto não sejam pessoas de direito civil, são pessoas de direito processual, podendo litigar em nome próprio por intermédio de qualquer dos representantes legais indicados no artigo 2º, § 3º, do Decreto nº 24.645/1934.

De acordo com o Professor MARCOS BERNARDES DE MELLO, «ser pessoa […] não constitui condição essencial para ser sujeito de direito», não se podendo confundir personalidade com capacidade de direito. […] Atendendo a conjunturas encontráveis no plano do relacionamento social, os ordenamentos jurídicos, excepcionalmente, atribuem a quem não é pessoa posições no mundo jurídico que, em geral se consubstanciam em direitos. […] É o que se verifica quanto a seres humanos ainda não nascidos (nascituros) ou mesmo não concebidos (nondum concepti), a alguns entes formados por grupos de pessoas, como os condomínios, os consórcios para aquisição de bens, os consórcios e grupos empresariais, as sociedades não-personificadas e as irregulares, e certas universalidades patrimoniais, de que são exemplos a massa falida, o espólio, as heranças jacentes e vacante e as fundações irregulares, que o ordenamento jurídico não reconhece como pessoas» (Teoria do fato jurídico: plano da eficácia – 1ª parte. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 126-129). Todavia, ouso discordar. Não é preciso revisar-se a concepção clássica de personalidade. A personalidade é qualidade e, portanto, efeito da incidência de regra jurídica. Para atenderem às suas específicas conveniências imputacionais, os diferentes ramos do direito podem conter regras que atribuam diferentes tipos de personalidade. Mais: para atender a essas conveniências, a personalidade pode ser atribuída de modo transitório ou durável. Data venia, dizer que «o sentido de pessoa deve supor duração temporal com certa estabilidade» – como faz o mestre alagoano – configura petição de princípio. Assim, somente se pode falar em personalidade civil, personalidade processual, personalidade tributária etc. Na verdade, trata-se de saber quem é pessoa para os fins do direito civil, quem é pessoa para os fins do direito processual, quem é pessoa para os fins do direito tributário etc. Ter personalidade civil é poder ser sujeito de direito civil, é poder figurar em relação jurídica de direito civil; ter personalidade processual é poder ser sujeito de direito processual, é poder figurar em relação jurídica de direito processual; ter personalidade tributária é poder ser sujeito de direito tributário, é poder figurar em relação jurídica de direito tributário; etc. A massa falida, por exemplo, não tem personalidade civil, mas tem personalidade processual. Para o direito civil, matriz e filial são a mesma pessoa jurídica; todavia, para o direito tributário, elas podem ser tratadas como pessoas jurídicas distintas entre si, sem ser preciso tratar a filial como «pessoa jurídica autônoma por ficção». Aliás, há quem sustente que, em causas tributárias, a filial tem personalidade processual autônoma.

Seja como for, a personalidade civil animal não humana produziria uma grave incoerência axiológica no sistema jurídico. Lembre-se que, em vida intrauterina, o nascituro ainda não é pessoa de direito civil. Afinal de contas, de acordo com o artigo 2º do Código Civil, só será pessoa de direito civil se nascer com vida. Se nasce morto, nunca foi sujeito de direito civil. Logo, entre a concepção e o nascimento, o nascituro tem exclusivamente interesses e expectativas de direitos resguardáveis. Daí por que, havendo direito futuro com certa probabilidade, é possível protegê-lo de eventual ameaça mediante a concessão de medida cautelar chamada «posse em nome do nascituro» (que é pedida pela mulher que tem o nascituro no ventre e que lhe pretenda garantir os direitos). Tudo isso significa que, «antes de o suporte fáctico da pessoa se completar, atribuem-se efeitos ao que é o suporte fáctico de agora, portanto incompleto para a eficácia da personalização» (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. t. I, § 51, 4). Ou seja, antes de se formar a personalidade civil, há antecipação de efeitos. Sobrevindo o nascimento com vida, constituem-se a pessoa de direito civil e, com eficácia retroativa, os seus direitos. Nesse sentido, um animal não humano presente teria mais valor que um animal humano futuro já concebido: o primeiro já seria pessoa de direito civil e, por conseguinte, sujeito de direito civil; o segundo ainda não.

Desse modo, fundar-se-ia uma cacotopia deprimente, em que um filhote de cachorro recém-nascido teria muito mais importância para o direito civil que um bebê humano prestes a nascer. Ter-se-ia, enfim, o atestado de vileza moral da sociedade atual. Por isso, a personalidade civil animal não humana não pode ser introduzida no direito brasileiro simpliciter et de plano. É necessário um rearranjo sistêmico (abstraindo-se, obviamente, a necessidade de se prever a personalidade civil animal não humana em regra legal expressa). Contudo, a única possibilidade de rearranjo é igualar o animal humano futuro já concebido ao animal não humano presente. É atribuir personalidade civil tanto ao animal não humano quanto ao nascituro. É interpretar o artigo 2º do Código Civil conforme o direito constitucional à vida e, dessa maneira: 1) proscrever a tese de que a personalidade civil do animal humano começa do nascimento com vida; 2) aceder à tese de que a personalidade civil do animal não humano começa do nascimento com vida; 3) aceder à tese de que a personalidade civil do animal humano começa da concepção (o que vai ao encontro do artigo 4.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: «Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. […]»). A propósito, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4150/2019, de iniciativa da Deputada Federal CHRIS TONIETTO (PSL/RJ), que visar dar ao artigo 2º do Código Civil a seguinte redação: «A personalidade civil do ser humano começa desde a sua concepção» (<https://cutt.ly/VRqCTqw>).

No entanto, essa equiparação jurídico-axiológica entre o animal não humano e o nascituro produz um buraco no sistema jurídico brasileiro: tendo capacidade de ser parte em processo [= personalidade de direito processual], o animal não humano pode demandar contra maus tratos por meio dos representantes aludidos no artigo 2º, § 3º, do Decreto nº 24.645/1934; porém, malgrado se atribua ao nascituro capacidade de ser parte em processo [= personalidade de direito processual], não se lhe disponibilizam expressamente representantes para demandarem quem lhe atente contra a vida ou contra a integridade física. Destarte, para se preencher essa lacuna, deve-se empregar a analogia, criando-se in favor nascituri um rol de representantes assemelhado ao artigo 2º, § 3º, do Decreto nº 24.645/1934 (os custodes nasciturorum). Com isso, o nascituro poderá ser representado em juízo pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelas associações de defesa da vida e da família etc. Decerto essas mesmas entidades podem pretender em juízo a tutela coletiva dos direitos e interesses dos nascituros (sugerindo um rol de legitimados mais amplo, v. Projeto de Lei nº 434/2021, de iniciativa da Deputada Federal CHRIS TONIETTO, que visa instituir o Estatuto do Nascituro. <https://cutt.ly/pReP08l>). Quanto à mulher que o traz no ventre, poderá demandar para ele (como sua representante), ou ser demandada por ele (o qual se beneficiará de outros representantes): no primeiro caso, pretende-se proteger os direitos do nascituro; no segundo caso, pretende-se protegê-lo dela. Se assim não for, a comunidade dos juristas brasileiros estará corrompida pelo sentimentalismo barato de quem, a um só tempo, chora por pandas, mas defende aborto de crianças.

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