Dr. Eduardo José da Fonseca Costa

DECISÃO COM SURPRESA E DECISÃO DE SURPRESA

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe dispositivo sem precedentes na tradição legislativa brasileira: o artigo 10 («O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício»).

Aos meus alunos da UNAERP

 

 

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe dispositivo sem precedentes na tradição legislativa brasileira: o artigo 10 («O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício»). O novo instituto tem sido mal apelidado de «princípio da não surpresa» ou «princípio da vedação à decisão surpresa». Na realidade, não se trata de princípio, valor-fim, imperativo categórico, mas de regra, norma, imperativo hipotético-condicional. Possui natureza deontológica, não axiológico-teleológica. Exprime-se por meio de proposição do tipo «Se A é → B é devido», não do tipo «A é almejado» (sobre a não normatividade dos princípios, v. nosso Princípio não é norma. BH: Casa do Direito, 2024). Logo, teria sido melhor chamá-lo de regra da não surpresa ou regra da vedação para a decisão surpresa.

Seja como for, de ordinário o artigo 10 do Código tem sido interpretado da seguinte maneira: a parte tem o direito de se manifestar acerca de todos os fundamentos que o Estado-juiz pode utilizar para decidir, mediante «participação real e efetiva» na construção da providência jurisdicional (cf., p. ex., MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado. 3. ed. SP: RT, 2015, p. 61). A esse direito tem sido dado amiúdeo nome de «garantia de influência». Assim, haveria uma vinculação situacional entre a «garantia da influência» [= posição jurídica subjetiva ativadas partes] e o «dever de não surpresa» [= posição jurídica subjetiva passiva do Estado-juiz]. De um lado, a parte tem a pretensão de se manifestar sobre todo e qualquer fundamento de fato ou de direito com arrimo no qual o Estado-juiz possa decidir; se outro lado, o Estado-juiz tem o correlato dever de dar à parte a oportunidade de se manifestar sobre todo e qualquer fundamento de fato ou de direito com arrimo no qual seja possível decidir. Na verdade, trata-se de uma relação jurídico-constitucional de direito fundamental, que decorre da garantia do contraditório e, portanto, da incidência da regra do artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988. Por conseguinte, o artigo 10 do CPC nada mais é do que uma das possíveis expressões do artigo5º, LV, da CF/1988. Daí por que, sendo uma garantia processual, a «garantia da influência» tem forçatransprocedimental, aplicando-se indistintamente às searascivil, trabalhista, penal comum, penal militar, penal eleitoral, eleitoral não penal, administrativo-tributária, administrativa não tributária etc.

Quase sempre a doutrina acerca do artigo 10 do CPC/2015 se limita a afirmar que o juiz está proibido de surpreender as partes com um teor decisório que não tenha sido primeiro debatido por elas. O juiz deve permitir, sem exceção, que as partes pré-questionem tudo quanto ele ventile invocar em sua decisão. É preciso que elas tenham a oportunidade de discutir com antecedência tudo que a decisão judicial conterá, tudo que nessa decisão se meterá, tudo aquilo que nela se encerrará, tudo que lhe será assunto. Desse modo, o juiz não pode debruçar-se sobrethema decidendi que não tenha sido antes um themadisputandi entre as partes. Elas não podem ser apanhadas de forma desavisada, inadvertida, desprevenida por um conteúdo decisório imprevisto, cujo enfrentamento pelo juiz seja um completo inesperado. Portanto, proibir que o juiz surpreenda as partes significa proibir que as surpreenda conteudisticamente. Trata-se de vedação para o teor decisório surpreendente. Vedando-se a surpresa material, permite-se que as partes combatam a reformabilidade da decisão e, em vista disso, tentem impedir uma proferição infundada, errônea, injusta.

Em geral, proíbe-se ao juiz introduzir ex officiofundamentos no objeto das discussões [= «impartialidade» = imparcialidade objetiva = imparcialidade funcional = imparcialidade funcional quanto ao objeto do processo]. Enfim, em geral, proíbe-se o iura novit curia (sobre o tema, v. nosso Processo e garantia. v. 1. Londrina: Toth, 2021, p. 217 e ss.). Sem embargo, se ele se resolver a quebrar a própria imparcialidade, deverá ao menos avisar as partes que cogita em introduzir esses fundamentos e que elas podem pronunciar-se tanto sobre eles quanto sobre a introdução em si. Não importa que os fundamentos considerados pelo juiz levem à procedência, à improcedência ou à extinção do processo sem a resolução do mérito: em qualquer dessas hipóteses, o juiz deve antes ouvir as partes a respeito deles. Em outras palavras, não pode haver elemento decisório «frio», que já não possa ter sido «esquentado» por uma disputa argumentativa. Decisão com elemento «frio», que não teve o ensejo de ser «esquentado», é decisão nula.

Nada obstante, o artigo 10 do CPC parece dizer muito mais do que dele se tem lido. A vedação para a decisão com conteúdo surpreendente é tão apenas uma das possibilidades adverbiais da não surpresa. É inegável que o fundamento com base no qual o juiz decide deve ser antes discutido pelas partes. Entretanto, o vocábulofundamento pode significar tanto a) o amparo ao veredito da decisão quanto b) o amparo ao momento da decisão. Quando o juiz julga incontinênti o mérito declarando a improcedência, por exemplo, ele decide alicerçado em, pelo menos, dois fundamentos: a) o fundamento que embasa a declaração de improcedência [= fundamento para o veredito decisório]; b) o fundamento que embasa o julgamento da causa no estado em que o processo se encontra [= fundamento para o instante decisório]. Tanto em uma situação como em outra, não pode haver surpresa. Daí por que se veda tanto a) a decisão com conteúdo surpreendente [= «decisão comsurpresa»] como b) a decisão em tempo surpreendente [= «decisão de surpresa»].

Aliás, trata-se de vedação mais do que conveniente, oportuna e praticável. Não se podem apanhar as partes de forma desavisada, inadvertida, desprevinida por decisão imprevista no tempo, adiantada sem aviso, esperável sópara o futuro. Nesse sentido, proibir que o juiz surpreenda as partes significa proibir que ele as surpreendatemporalmente. Trata-se de vedação para o tempo decisório surpreendente. Vedando-se a surpresa temporal, permite-se que as partes combatam a nulidade que acena no horizonte e, desse modo, tentem evitar uma proferiçãoaçodada, afobada, afoita, precipitada, pressurosa. Ao fim e ao cabo, proibir que as partes se surpreendam pelo julgamento imediato do mérito implica atribuir-lhes o direito de advertirem o juiz para o risco eventual de uma sentença inválida por cerceamento de prova. Daí se notaque a vedação para a decisão com surpresa decorre da garantia do contraditório; a vedação para a decisão de surpresa, da garantia da ampla defesa (para uma distinção entre contraditório e ampla defesa, v. nossoNótula exegética sobre a distinção entre contraditório e ampla defesa. <https://encurtador.com.br/Y98Vx>).

A preocupação com o julgamento imediato do mérito não é exagerada. São muitas as sentenças nulas que no cotidiano forense se proferem com apoio no art. 355, I, do CPC. A aplicação incorreta desse dispositivo pelos juízes tem sido um maquinismo de vícios processuais. Por esse motivo, é necessário delimitar três resoluções bem distintas entre si: 1) a resolução em que o juiz: 1.1) comunica a sua intenção de julgar o mérito sem demora; 1.2) concede às partes a oportunidade de se manifestarem a respeito dessa intenção; 2) a resolução em que o juiz: 2.1) desacolhe os argumentos contra o julgamento «antecipado» do mérito, rejeitando eventuais questões preliminares arguidas na contestação, indeferindo eventuais pedidos de produção de prova formulados na petição inicial e na contestação, bem como delimitando as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; 2.2) chama os autos à conclusão para sentença; 3) a resolução efetiva em que o juiz emite o julgamento «antecipado» do mérito.

Entre (2) e (3) é indispensável um intervalo razoável para que a parte prejudicada tenha tempo de pedir reconsideração ou mesmo interpor agravo de instrumento (malgrado o rol do artigo 1.015 do CPC, que se supõe taxativo). Tendo havido a interposição de recurso, é recomendável que o juiz lhe aguarde o desfecho para se evitar tumulto processual, ainda que o relator não haja concedido efeito suspensivo; afinal, o provimento do agravo pode vir depois da remessa dos autos ao tribunal para o julgamento de eventual apelação. Em suma, esses são os cuidados básicos que o juiz deve ter na aplicação do artigo 355, I, do CPC. Em todo caso, a chave garantistaque equaciona o problema é o aviso prévio do julgamento imediato do mérito, o anúncio preliminar sobre a intenção de se julgar conforme o estado do processo, a intimação das partes sobre a intenção de se resolver o mérito desde já, a comunicação anterior que se lhes faz a respeito da intenção de se ceifar a instrução (em sentido similar: DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 18. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 699). Porque a função de todo aviso prévio é esta: deixar os avisados em alerta, atentos, vigilantes, de prontidão, prontos para agir na defesa de seus interesses.

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