Dr. Eduardo José da Fonseca Costa

DEZ SENÕES DO PROCESSO ESTRUTURAL

A Marsel Botelho, In memoriam É interessante perceber como a ciência procedimental civil brasileira se tem feito de modismos e como cada modismo se tem divulgado na mídia por intermédio de slogans. Nos primeiros cinco anos de vigência do CPC/2015, as tendências foram o precedentalismo (com os slogans da «segurança» e da «isonomia»), o cooperativismo (com os slogans da «efetividade» e da «justiça»), o eficienticismo (com os slogans da «celeridade» e dos «bons resultados») e o negocialismo (com os slogans da «flexibilização» e da «democracia»).

A Marsel Botelho,

In memoriam

É interessante perceber como a ciência procedimental civil brasileira se tem feito de modismos e como cada modismo se tem divulgado na mídia por intermédio de slogans. Nos primeiros cinco anos de vigência do CPC/2015, as tendências foram o precedentalismo (com os slogans da «segurança» e da «isonomia»), o cooperativismo (com os slogans da «efetividade» e da «justiça»), o eficienticismo (com os slogans da «celeridade» e dos «bons resultados») e o negocialismo (com os slogans da «flexibilização» e da «democracia»). A propósito, sob a vigência do CPC/1973, a propagandização de instituições procedimentais civis já se fazia sentir, por exemplo, no inquisitivismo probatório e nos seus respectivos slogans («verdade», «paz social» etc.). Recentemente, duas novas outfit ideias ganharam força no mercado da moda: a desjudicialização da execução civil (com os slogans da «desburocratização» e da «simplificação») e o processo estrutural (com os slogans da «complexidade», da «multilateralidade» e da «necessidade de alteração do estado de coisas»). Por ora, interessa-nos analisar mais de perto a doutrina publicitária do chamado «processo estrutural». Provavelmente é o modismo mais decantado pela intelligentsia jurídica progressista brasileira atual, a qual enxerga no direito em geral e no processo em particular um «instrumento dúctil de transformação da realidade social». Trata-se do processo em juízo por meio do qual se busca a reestruturação de instituições ou políticas públicas para um melhor atendimento sistêmico aos direitos fundamentais (em sentido similar, e. g.: DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes e OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. n. 75, jan/mar 2020, p. 104). É bem verdade que o seu design dogmático tem sido desenvolvido pelo esforço intelectual de respeitabilíssimos juristas. Esmerados livros, teses, dissertações, monografias e artigos têm sido escritos sobre o tema. Vários cursos e palestras têm sido ministrados. Congressos, simpósios, seminários e encontros têm sido organizados no Brasil e no exterior. Todo esse arcabouço acadêmico-institucional e literário-científico tem influenciado a quotidianidade prática do Poder Judiciário, servindo-lhe de fundamento para sentenças, acórdãos e recomendações administrativas interna corporis. No entanto, algumas questões fundamentais estão ainda mal resolvidas, ainda não foram enfrentadas, ou simplesmente ainda não foram formuladas. Trata-se de questões teóricas cuja superação cabal é imprescindível para que se possa falar em uma «doutrina do processo estrutural» com cor, silhueta, caimento, textura e harmonia. Sem isso, a ambiciosa teoria se comporta como um vestuário inovador e ousado, mas desbotável na primeira lavagem. Dessa maneira, deixo essas questões registradas neste pequeno artigo para que elas não se percam no horizonte do esquecimento. Quiçá um dia aos estruturalistas sobrem o tempo e a vontade necessários para encará-las de um modo mais adequado.

Em primeiro lugar, os teóricos do processo estrutural precisam solucionar a equação democrática contra a qual as suas ideias parecem atentar. A edição de políticas públicas para a realização de tarefas, metas, objetivos e finalidades exige a conjugação de atos legislativos e governamentais. Exige-se o concurso coordenado de atos praticados por agentes eleitos diretamente pelo povo. Todavia, muitas vezes essas políticas não são implementadas [= inexistência], são implementadas de modo bastante [= insuficiência] ou, embora implementadas, não logram atingir a finalidade para a qual foram criadas [= ineficiência]. Logo, geralmente, os legitimados ativos pedem a concessão de tutela «jurisdicional» para que essas políticas sejam implementadas, complementados ou retificadas. Desse jeito, leis e decretos cedem passo a decisões judiciais. Em lugar do protagonismo governantes-parlamentares, assiste-se ao protagonismo promotor-juiz. A política deixa de se plasmar por agentes eleitos pelo povo e passa a se plasmar por agentes aprovados em concurso público. Uma ação política passa a ser praticada por agentes não políticos, que não têm legitimidade para expressar a volonté générale du peuple. De um lado, o Poder Judiciário padece do «pecado original da aristocraticidade crônica»; logo, faltando-lhe democraticidade constitutiva, cabe-lhe extraí-la aplicando à risca as regras editadas ex ante pelos representantes eleitos do povo (sobre o tema, v. nosso O Poder Judiciário diante da soberania popular... <https://cutt.ly/Ob00krI>). De outro lado, o Ministério Público não é um quarto poder que emana do povo e, assim, não é um órgão de soberania popular, mas «função essencial à Justiça»: exerce-se perante o Poder Judiciário e em razão dele, ainda que de forma judicial ou extrajudicial; posiciona-se ao redor da jurisdição, tem natureza circunjurisdicional. É função anexa, não inexa; não flui de dentro do povo, apesar de se juntar por fora aos poderes que do povo fluem; o nexo com o povo e, por via reflexa, com os três Poderes, é externo, não interno; é função criada pela Constituição para se acoplar desde fora, não emanada do povo para concertar desde dentro (sobre o tema, v. nosso O fundamento do Ministério Público. <https://cutt.ly/nb03ZNv>).

Nota-se, assim, que no processo estrutural a «conta democrática» não fecha (salvo se se entender que o concurso público per se é fator de legitimidade democrática, o que geraria dois problemas: conferiria legitimidade indistintamente a todo e qualquer concursado e não explicaria a legitimidade de ministros de tribunais superiores e desembargadores nomeados politicamente - sem razão, portanto: ARRUDA NETO, Pedro Thomé de. Direito das políticas públicas. BH: Fórum, 2015, p. 110). Talvez fechasse se o legitimado ativo ad causam fosse o defensor do povo (também conhecido como provedor de justiça). Trata-se de órgão de controle independente e com autonomia funcional para a promoção da cidadania, dotado de capacidade de atuar em juízo e fora dele, não raro com imunidades e prerrogativas próprias aos congressistas, cujo ocupante é eleito direta ou indiretamente para mandato com prazo fixo (v. Constituição argentina de 1995, art. 86; Constituição colombiana de 1991, artigos 178-1, 277-2, 281 a 284; Constituição peruana de 1993, artigos 161 e 162; Constituição equatoriana de 1998, artigo 216; Constituição boliviana de 2009, artigos 162-8 e 218 a 224; Constituição espanhola de 1978, artigos 54 e 70, 1, c; Constituição portuguesa de 1976, art. 23º; Tratado de Maastricht de 1992, art. 138-E) (sobre o defensor do povo, p. ex.: BEZERRA, Helga Maria Saboia. Defensor do Povo: origens do instituto Ombudsman e a malograda experiência brasileira. Direito, Estado e Sociedade. n. 36. jan-jun/2010, p. 46-73). Decerto a presença do defensor do povo democratizaria sobremaneira o processo estrutural. Mas é figura inexistente no Brasil. Como se não bastasse, os institutos participativos da audiência pública, da consulta pública e do amicus curiæ raramente propiciam democraticidade efetiva: na prática, os processos estruturais são mal divulgados, o interesse comunitário por eles é pouco, não se consegue reproduzir neles o ambiente paraparlamentar das town meetings e, dessarte, a democraticidade é tímida e eventual. Daí por que seria necessário refundar uma teoria jurídica da democracia - se é que é possível - para só depois extrair dela uma teoria jurídica do processo estrutural.

Em segundo lugar, os estruturalistas precisam explicar como se pode teorizar a interferência judicial sobre os outros poderes sem se teorizar a fundo a própria separação de poderes. A rigor, não há previsão constitucional expressa sobre o controle judicial de políticas públicas. A intromissão judicial em escolhas discricionárias indevassáveis excepciona a separação de poderes em sua concepção mais tradicional. Por isso, aos teóricos do processo estrutural não basta acusar essa concepção de «atrasada», nem bradar aos quatro ventos a necessidade de uma concepção mais «avançada»: eles precisam de uma vez por todas apresentar essa teoria «avançada» e minudenciar dogmaticamente essa «nova» separação de poderes em seus aspectos analíticos, hermenêuticos e pragmáticos, derivando dela a possibilidade de o Judiciário readequar instituições e políticas. Contudo, a tarefa não é fácil. À Constituição cabe estabelecer os limites positivos e negativos do poder; logo, só a ela cabe prever quando há negligência de determinado poder [= regra de conduta] e quando se autoriza que ele seja substituído pontualmente por outro [= regra de sanção]. Por força da garantia da separação de poderes [CF, artigos 2º e 60, § 4º, III], é necessário que essas regras sejam excepcionais, claras, objetivas e expressas. Daí por que a Constituição não prevê sanção para toda e qualquer negligência. Ademais, nem sempre a sanção consiste na substituição ad hoc de um poder por outro. Vige um regime fragmentário, pois: visto que a interferência de um poder sobre outro deve ser mínima, as hipóteses constitucionalmente qualificadas de negligência e de conseguinte substituição ad hoc se reservam a situações graves selecionadas com pudor pela própria Constituição.

Logo, quando se diz que o Judiciário pode suprir negligências governamentais e legislativas de forma geral e irrestrita, é preciso justificar a vigência conjunta de - pelo menos - cinco regras constitucionais com hipóteses de incidência e consequências jurídicas muito bem definidas: REGRA 1: o duo legislativo-governamental tem o dever de editar políticas públicas sobre os temas A, B e C do modo x, y ou z; REGRA 2: Se não se editam políticas sobre os temas A, B e C, ou se não se editam do modo x, y ou z, há um estado de negligência; REGRA 3: Havendo negligência, o órgão competente para pronunciá-la é o Judiciário; REGRA 4: Pronunciada a negligência, pode o Judiciário exercer como substituto a função legislativo-governamental, suprindo a política no ponto em que ela se operou de maneira inexistente, insuficiente ou ineficiente; REGRA 5: Se a negligência é judiciária, os demais poderes não têm competência para reconhecer esse estado, nem para exercer substitutivamente a função jurisdicional típica. Sem essas justificativas, nenhum jurista pode advogar as mágicas prometidas pelo processo estrutural (v. nosso A (in)justificabilidade normativa da legiferação judiciária. <https://cutt.ly/Wb3qax0>). Tudo isso mostra que a reestruturação judicial de instituições e políticas públicas depende de emenda constitucional e, ulteriormente, de regulamentação legal. É modelo de constitutione ferenda, não de constitutione lata. Para se fugir a esse inconveniente, aqui e ali se veem três argumentos: 1) o processo estrutural precisa edificar-se porque a jurisprudência dos tribunais tem admitido a intervenção judicial em instituições e políticas; 2) as circunstâncias fáticas impelem os juízes a relativizar a separação de poderes. 3) a fundamentação das decisões judiciais supre o sistema de checks and balances. Contudo, os argumentos são frágeis. Um revirement jurisprudencial arruinaria por completo a ideia de processo estrutural. Essa baixa densidade dogmática se evidencia ainda mais quando se percebe a teoria basear-se em um costume judicial contra constitutionem. Ademais, um juiz com habilidade retórico-argumentativa mediana pode fundamentar qualquer arbitrariedade (cf. RODRIGUES, Rui Martinho e ALBUQUERQUE, Cândido Bittencourt. A República entre igualdade e especificidade. A (i)legitimidade das políticas públicas. SP: Malheiros, 2015, p. 36). Por esse ângulo, a teoria lembra a estátua de Nabucodonosor: cabeça de ouro, peito de prata, quadris de bronze, pernas de ferro e pés de barro. Na prática, os estruturalistas têm aceitado a concepção tradicional de separação de poderes, mas feito relativizações ad hoc sem qualquer critério dogmático desenvolvido ex ante.

Em terceiro lugar, os estruturalistas precisam explicar por que têm capacidade imaginativa para medidas pró-estruturantes, mas não para medidas anti-desestruturantes. Não raro, a otimização judicial de uma determinada política - privilegiada de modo exclusivo e isolado pelo Ministério Público - enseja a desotimização judicial das políticas não privilegiadas. Nutrindo-se financeiramente uma delas, desnutrem-se as restantes (às vezes, tão ou mais carentes e emergenciais). Desorganiza-se por completo, assim, a metodologia discricionária de repartimento proporcional dos recursos finitos definida pelo governante (obs.: muitas vezes, esse planejamento financeiro obedece a promessas de campanha determinantes para a eleição democrática do governante e, justamente por isso, sintoniza com a vontade de povo). Enfim, o superdimensionamento idealizado de uma única política pode prejudicar a eficiência alocativa do sistema equilibrado de distribuição de recursos limitados. Isso é bastante comum nos entes federativos cujas políticas públicas operam homogeneamente em nível sub-ótimo. Não raro, a intervenção judicial desestabiliza uma hipercomplexidade que já é de difícil estabilização. Força o administrador a revisar as prioridades locais e, por conseguinte, os critérios originários de repartição do bolo orçamentário. Ou seja, antes da intervenção judicial, o administrador precisava dividir um cobertor curto; após a intervenção, precisa improvisadamente reequilibrar os pratos para minimizar o impacto negativo das medidas (des)estruturantes.

Portanto, todo processo estrutural traz riscos. O juiz não conhece as necessidades de cada tema governamental. É alheio às intimidades da Administração Pública e aos múltiplos fatores que determinam a sua economia interna. Não tem uma visão global dos problemas que lhe permita sentir a conveniência e a oportunidade de fazer prevalecer um sobre os outros. Tampouco o proponente da demanda estrutural tem essa visão. Dessa forma, é preciso evitar que se desencadeiem amplas distorções no arranjo harmonioso das políticas públicas. É preciso impedir que uma justiça pontual provoque uma injustiça sistêmica. Não se pode simplesmente favorecer uma pasta de governo desconsiderando-se as carências atendidas pelas demais. Para tanto, seria recomendável que os processos estruturais sempre se antecedessem de um consistente estudo prévio de impacto orçamentário. O Ministério Público deveria ter o ônus de provar que a realocação de verbas para uma determinada política não compromete as demais. Deveria deixar claro que as políticas dispensadas não necessitam do excesso de recursos que se lhes destinam, ou que necessitam menos do que a política escolhida. Deveria demonstrar, enfim, que há benefício mais significativo na destinação de novos recursos para a política eleita do que na manutenção deles nas políticas preteridas. A realização desse estudo poderia talvez servir de condição liebmaniana da ação [= condição de apreciabilidade do mérito da causa estrutural]. É certo que essa específica condição da ação não tem previsão na lei. Entretanto, para a teoria do processo estrutural isso jamais foi um empeço: ela parece ser um jardim de delícias para a confusão desinibida entre os modelos de lege lata e os modelos de lege ferenda. Logo, sem oferecer medidas precaucionais contra os efeitos colaterais indesejados da intervenção judicial em políticas públicas, a teoria do processo estrutural continuará incompleta. Pior: temerária para as finanças públicas. Será uma teoria do poder estruturante sem contrapartida em accountability. Portanto, será uma teoria antirrepublicana. Exatamente por isso, seguirá despertando desconfianças. Por enquanto, ela soa mais como uma doutrina ativista para o empoderamento do Ministério Público e do Poder Judiciário, fazendo governantes de promotores e juízes. Não por outro motivo, de vez em quando prefeitos de pequenos municípios - totalmente reféns do Ministério Público - submetem extraoficialmente os seus planos de ação ao aval do promotor da comarca. Tem sido uma forma pragmática de se acautelarem contra ações penais, ações civis públicas, ações de improbidade administrativa e enxurradas desarrazoadas de requisições de informações e ofícios de recomendação. Em situações folclóricas extremas, o prefeito entrega literalmente as «chaves da prefeitura» ao promotor. Um gesto que vale por mil doutrinas.

Em quarto lugar, os estruturalistas precisam erradicar toda sorte de subjetivismos e desenvolver critérios mais objetivos para que o demandante possa selecionar de modo mais racional a política pública sub judice. Nesse assunto, a teoria do processo estrutural tem sido um verdadeiro deserto de propostas. Nada se escreve sobre o tema. Em tese, podem-se conceber quatro modelos de escolha: i) escolha legalmente tabelada ii) escolha discricionária racionalmente motivada; iii) escolha íntima imotivada; iv) escolha vinculada a critérios objetivos cientificamente fundados. Em (i), a política estruturanda já está preestabelecida em lei; no entanto, esse modelo engessa evidentemente o sistema, pois pode deixar de fora políticas não priorizadas ex lege, posto que desestruturadas ex realitate. Ou seja, é possível que a política desprezada pela lei careça mais de intromissão judicial do que a política laureada pela lei. Em (ii), a política estruturanda é escolhida pelo promotor mediante a externação de critérios racionais desenvolvidos por ele próprio de maneira unilateral e casuística; todavia, o modelo não elimina por inteiro a discricionariedade do promotor. Existe ampla margem para que o proponente da ação estrutural justifique a necessidade de intervenção judicial em políticas deveras deficitárias, conquanto não prioritárias. Em (iii), a política estruturanda é escolhida pelo promotor secundum conscientiam. Ele se utiliza de critérios não externados e, por conseguinte, não sindicáveis pelo juiz, nem por órgão ministerial de controle interno. Na prática, infelizmente, é o modelo imperante no Brasil. Muitas vezes, o controle judicial de políticas públicas fica à mercê das preferências pessoais dos promotores. Em outros termos, cada promotor tem um «estilo próprio», um «gosto pessoal», um «traço identitário» nessa matéria. Alguns deles são aficionados por política indigenista; outros por política de saúde; outros por política ambiental; outros por política educacional; outros por política habitacional; outros por política anticorrupção; outros por política histórico-cultural; outros por política de segurança pública; outros por políticas afirmativas. Cada qual parece seguir uma segunda vocação temática além do direito. Noutras vezes, o promotor é seduzido pela representação que lhe é feita e se sensibiliza com as carências de uma categoria específica vitimada por determinada desestruturação política ou institucional.

No entanto, nem sempre a política subjetivamente preferida coincide com a política objetivamente preferencial. A separação de poderes é um tecido bastante sensível, razão por que se aconselha precaução, cautela, moderação, bom senso, equilíbrio e responsabilidade na escolha que provocará a interferência excepcional do Poder Judiciário na esfera legislativo-governamental. Daí a necessidade de se despsicologizar o sistema de controle judicial de políticas públicas e, destarte, de se adotar o modelo (iv). A política estruturanda deve ser eleita pelo promotor mediante a externação de critérios técnico-científicos intersubjetivamente compartilhados. Esse externação se poderia consubstanciar num estudo prévio de impacto estrutural com modelo regulado em lei. Isso permitiria ao juiz e ao órgão ministerial de controle interno verificar in concreto se a política pública escolhida está de fato abaixo dos padrões mínimos toleráveis de eficiência e se, consequentemente, ela prefere às políticas públicas não escolhidas (obedecida a atribuição material do ramo e do órgão do Ministério Público envolvidos). Trocando em miúdos, isso permitiria a um e outro um juízo preliminar de seletividade. Havendo porventura políticas públicas preteridas com maior prioridade, poderia o juiz extinguir o processo sem resolução do mérito por ausência de necessidade primacial. O juiz poderia proferir sentença terminativa sob o fundamento de que a política pública escolhida, apesar de relativamente ineficiente, não é absolutamente ineficiente. Ela tem necessidades, mas não é «a» mais necessitada. Não é the highest of all priorities. É muito difícil encontrar um ente federativo cujas políticas de governo não funcionem todas elas abaixo do nível ideal; assim sendo, permitir que o promotor escolha ao seu exclusivo talante qual delas será controlada marcar o controle judicial de políticas públicas com o selo da aleatoriedade.

Em quinto lugar, os estruturalistas precisam justificar melhor o lócus privilegiado do juiz estruturador no quadro geral dos agentes públicos. Como sabido, para que tenham a competência discricionária de fazer escolhas político-deliberativas, os agentes governamentais: a) precisam filiar-se a um partido político, disputar eleições e eleger-se pelo voto popular para se investirem no cargo; b) são fiscalizados por órgãos de controle interno (auditorias ad hoc, controladoria geral etc.), por órgãos de controle externo (parlamento, tribunal de contas, MP, Judiciário etc.) e pela sociedade em geral (organizações não governamentais, população etc.); c) diante de más escolhas, podem sofrer sanções tanto técnico-jurídicas (ex.: impeachment, sanções por improbidade administrativa, sanções penais por crime comum) quanto prático-políticas (ex.: derrota na disputa eleitoral seguinte). Por sua vez, os agentes jurisdicionais: a) necessitam das garantias funcionais da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de vencimentos para se vincularem exclusivamente ao sistema de direito positivo vigente e, com isso, exercerem com independência e imparcialidade as competências técnico-burocráticas que lhe são atribuídas; b) são investidos no cargo mediante aprovação em concurso público de provas e títulos, ou mediante nomeação política pelo chefe do Poder Executivo); c) são fiscalizados pelas partes, pelos seus advogados, por terceiros interessados, pelo MP quando intervém como custos legis e pelas instâncias superiores no julgamento dos recursos e das ações impugnativas; d) as suas más decisões podem ser nulificadas ou reformadas. Note-se, assim, que a natureza de cada função determina materialmente os ônus, os bônus e as consequências dos atos praticados.

No entanto, quando se permite uma interferência judicial sistêmica em escolhas político-governamentais, cria-se ipso facto uma figura híbrida, excêntrica, superpoderosa e, portanto, antirrepublicana de agente público. Fica-se diante de um superadministrador «convenientemente» blindado com as garantias da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de vencimentos. Trata-se de um centauro mezzo-juiz mezzo-governante. Enfim, trata-se de um ornitorrinco jurídico, que exerce competência governamental substitutiva, mas sem filiação partidária, sem disputa eleitoral e sem legitimação pelo voto do povo. As escolhas desastrosas para a população, que porventura tome no curso do processo estrutural, não lhe acarretam sanções, salvo se procede «com dolo ou fraude» [CPC, art. 143, I]. No desempenho de «atividade jurisdicional» [rectius: atividade estruturante para- ou co-governamental], não responde por improbidade administrativa, nem por crime comum, nem por crime político. Não apresenta relatório e balanço anuais a tribunal de contas. É o melhor dos mundos: os bônus da função democrático-governamental combinados com os bônus da função aristocrático-jurisdicional; os bônus da função democrático-governamental sem os ônus da função democrático-governamental. Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, exceto para o «juiz governante» do processo estrutural. Daí a forte tentação para a megalomania judiciária. Nos autos da ADPF 635, o Ministro Edson Fachin concedeu tutela provisória para restringir a realização de incursões policiais em comunidades do Rio de Janeiro enquanto perdurar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19; porém, se porventura a medida se revelar desastrosa para a política de segurança pública local, Sua Excelência não sofrerá qualquer sanção. Em contraposição, se a medida tivesse partido do Governador, a improbabilidade de reeleição e a enxurrada de ações civis públicas e ações de improbidade administrativa seriam inevitáveis. Ainda assim, há uma lei impessoal e infalível da vida social: nunca há bônus sem ônus. A física política se encarrega de colocar sobre os ombros do superjuiz os pesos do megapoder discricionário que ele irroga a si próprio. Um desses pesos é a exposição ao julgamento e achincalhamento populares. Como bem pontuava JOHN LOCKE, o povo é «o» juiz dos governantes (Second Treatise on Civil Government, §§ 240-242). Quem se excede no vinho político, cedo ou tarde lhe prova o amargor. Quem governa, há de suportar as amolações e cobranças próprias a esse officium publicum. Quem atua como «governante juiz» não escapa ao juiz dos governantes.

Em sexto lugar, os estruturalistas precisam ser mais claros sobre o papel da lei em sentido formal no direito em geral e no direito processual em particular. A Constituição Federal de 1988 prescreve: a) a garantia da lei como fonte reguladora exclusiva das condutas [art. 5º, II]; b) a garantia do devido processo legal como via única para o Estado privar a liberdade e os bens dos cidadãos [art. 5º, LIV]; c) as leis complementar, ordinária e delegada - que são atos do Poder Legislativo - como expressões da lei [art. 59, II a IV]; d) a competência privativa da União para legislar sobre direito processual [art. 22, I]. Portanto, a CF/1988 prescreve o processo como direito subjetivo fundamental de liberdade, i. e., como garantia individual dos cidadãos contra o eventual arbítrio estatal. Mais: prescreve que essa garantia de liberdade só pode ser regulada em lei editada pelo Poder Legislativo da União. Não obstante, parte considerável das propostas procedimentais feitas pelos estruturalistas atenta contra a ideia de processo como garantia do cidadão-jurisdicionado, aderindo à visão autoritária e inconstitucional de processo como instrumento do Estado-jurisdição. Melhor dizendo, o processo serviria à otimização flexível de medidas estruturantes, não ao refreamento rígido de medidas estruturantes arbitrárias. Como se não bastasse, parte considerável dessas propostas não encontra qualquer respaldo na legislação federal atualmente vigente. Ao contrário: violam-na. Tudo isso seria perdoável se a teoria do processo estrutural fosse um modelo prescritivo, normativo, de iure condendo. Contudo, ela é vendida pelos seus próceres como um modelo descritivo, positivo, de iure condito. Daí as ginásticas interpretativas que eles fazem para justificar a própria teoria.

Uma delas é a «atenuação das regras da congruência objetiva externa e da estabilização objetiva da demanda, com possibilidade de alteração do objeto». Segundo FREDIE DIDIER JR., HERMES ZANETI JR. e RAFAEL ALEXANDRIA DE OLIVEIRA, seria preciso atenuar a «correlação entre a decisão e a demanda que ela resolve», libertando «o magistrado das amarras dos pedidos das partes, haja vista que a lógica que preside os processos estruturais não é a mesma que inspira os litígios não estruturais, em que o julgador se põe diante de três caminhos a seguir, quais sejam: o deferimento, o deferimento parcial ou o indeferimento da postulação». Isso porque, para se «alcançar uma finalidade, mediante a execução estruturada de certas condutas», «nem sempre é possível à parte antever todas as condutas que precisam ser adotadas ou evitadas pela parte contrária». Igualmente, seria preciso «atenuar a regra da estabilização objetiva da demanda, permitindo-se até mesmo que haja alteração do objeto, desde que assegurado o contraditório prévio e substancial» (Ob. cit., p. 124-126. Em sentido similar: ARENHART, Sergio Cruz. Processos estruturais no direito brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão. Revista de processo comparado. v. 2. 2015, p. 211-229; GALDINO, Matheus Souza. Processos estruturais. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 97 et seq.). Todavia, o termo «atenuação» opera aí como um indisfarçável eufemismo. Com efeito, trata-se de interpretação contra legem. É violação nua e crua dos artigos 141, 492 e 329 do CPC. A expressão «complexidade do litígio estrutural» não pode ser usada como uma espécie de «fórmula invocatória sociológica» para a convalidação de ilegalidades. Não vige no sistema procedimental civil brasileiro qualquer regra legal expressa pré-excludente das exigências de congruência objetiva externa e de estabilização objetiva da demanda. O juiz deve restringir-se à causa de pedir e ao pedido tal como estabilizados, não podendo imprimir qualquer «dinamização» - o abracadabra dos ativistas - aos themæ disputandum e, em consequência, aos themæ decidendum. Portanto, é necessário repetir mil vezes: o processo estrutural depende de regulamentação legal específica (abstraindo-se, evidentemente, a necessidade de prévia reforma constitucional). Tal como proposto, é «apenas» um modelo de lege ferenda, não de lege lata. E isso por si só já deveria orgulhar os seus defensores: o trabalho acadêmico de social design é digno, embora pouco desenvolvido no Brasil. Infelizmente, porém, os processualistas nacionais são viciados em si mesmos e, por isso, não diferenciam mais entre a realidade interna subjetiva das suas ideias doutrinárias e a realidade externa objetiva do direito posto.

Em sétimo lugar, como cediço, «a noção de processo estrutural surgiu nos Estados Unidos, a partir do ativismo judicial que marcou a atuação do Poder Judiciário norte-americano entre 1950 e 1970» (DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes e OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Ob. cit., p. 102). Os estruturalistas costumam invocar como relevant historical example o famoso precedente Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954). Nesse caso, a Suprema Corte dos EUA declarou por unanimidade a inconstitucionalidade das divisões raciais entre estudantes brancos e negros em escolas públicas afirmando que «separate educational facilities are inherently unequal» (para uma análise detida do precedente, p. ex.: JOBIM, Marco Félix. Medidas estruturantes. Porto Alegre, 2013, p. 75 et seq.; PUGA, Mariela. La litis estructural en el caso Brown v. Board of EducationProcessos estruturais. Org. Sergio Cruz Arenhart et al. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 85-139). Contudo, esses teóricos precisam justificar melhor por que precedentes norte-americanos tão antigos devem servir de inspiração à realidade brasileira atual. As demandas sociais norte-americanas dos anos 1950 a 1970 são similares às demandas sociais brasileiras dos anos 2020? Em que sentido? Ainda que exista similaridade entre as duas realidades sociais, existe similaridade entre os dois sistemas de direito positivo? O direito brasileiro vigente nos anos 2020 é tão permeável à medidas estruturantes quanto foi o direito norte-americano vigente entre os anos 1950 e 1970? Havia realmente essa permeabilidade ou as medidas estruturantes foram introduzidas a fórceps? De uma maneira geral, como a doutrina norte-americana da época recebeu o estruturalismo praticado pela Suprema Corte? Houve divergência doutrinária? Ela se dividia em quantas correntes? Quais os principais argumentos da corrente adversária às structural reforms? Essa corrente era minoritária ou majoritária? Como os Poderes Legislativo e Executivo reagiram a esse ativismo judicial? Houve crises institucionais? Os processos estruturais sempre foram bem-sucedidos? Houve experiências malsucedidas? Em que medida elas foram malsucedidas? Qual a proporção entre experiências bem-sucedidas e experiências malsucedidas? A práxis estruturante encontra eco na tradição judiciária anglo-saxã em geral e na tradição judiciária norte-americana em particular? O Brasil está radicado em tradição institucional semelhante? Por que os teóricos do processo estrutural não invocam precedentes norte-americanos dos anos 1980 em diante? Dos anos 1980 em diante a sociedade norte-americana passou a dispensar o ativismo judicial que outrora lhe havia sido benéfico? Qual o motivo dessa dispensa: a desnecessidade superveniente do ativismo judicial ante a eficienticização global máxima das políticas públicas dos EUA, ou a conscientização posterior de que o ativismo judicial é pernicioso para a democracia daquele país? Como tem sido nos últimos anos a jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a concessão e o cumprimento de structural injuctions? De ordinário, como a doutrina norte-americana atual tem reagido a essa jurisprudência? Não se está de fato importando mais um «rejeito jurisprudencial» do Primeiro Mundo? Assim como nos EUA, não se trata de novidade fadada a abusos, ao descrédito e, portanto, ao desuso?

Como se vê, sob o ponto de vista metodológico, é imprescindível que as circunstâncias sociológicas, axiológicas e normativas do Brasil de hoje e dos Estados Unidos da América de ontem sejam cotejadas entre si de forma analítica e cuidadosa. Não se pode cair na tentação colonial de um copismo institucional sem filtros rígidos e adaptações severas. Pior: um copismo institucional deslocado no tempo. Toda importação de institutos estrangeiros deve submeter-se a forte «barreira jurídico-sanitária», pois regularmente a livre circulação deles pelo País dissemina pragas e doenças de difícil combate. Basta lembrar que teorias alienígenas como a normatividade dos princípios, a ponderação de direitos fundamentais, a cooperação processual e a vinculatividade dos precedentes judiciais estão sendo reproduzidos em terra brasilis de forma distorcida ou incompleta, gerando um alto risco de autocracia judicial e, consequentemente, de desequilíbrio político-constitucional.

Em oitavo lugar, os estruturalistas precisam esclarecer qual o lugar de estudo do processo estrutural: 1) a dogmática do procedimento civil ou 2) a pragmática da conciliação e da mediação? Isso porque boa parte do êxito que se atribui ao processo estrutural está associada ao seu modelo de «execução cooperativa ou comparticipativa de políticas públicas». Na verdade, o texto pioneiro sobre o tema no Brasil foi meu: A «execução negociada» de políticas públicas em juízo. RePro 212. out/2012, p. 25–56. À época, tentei relatar a minha experiência como juiz federal em Natal/RN e Corumbá/MS na execução de sentenças proferidas por outros juízes, que condenavam entes públicos à implementação de políticas públicas e que me pareciam irrealizáveis ou de difícil realização. Trata-se de uma reunião de fórmulas práticas bem-sucedidas; entretanto, elas não dizem respeito a medidas coercitivas como imposição de multa diária e ameaça de responsabilização penal (que sempre se me mostraram não efetivas), mas ao cumprimento voluntário de um cronograma negociado multilateralmente etapa a etapa por todos os setores públicos e privados implicados na elaboração da política pública. A despeito de algum verniz dogmático, o texto é predominantemente pragmático. Ele explana estratégias de mediação e conciliação a que cheguei nessa matéria por tentativa e erro. É certo que escrevi o trabalho empolgado pelo tema do controle judicial de políticas públicas. Naquele momento me faltavam maturidade, leitura e tempo de reflexão. De todo modo, o artigo é menos uma apologia ao controle de políticas públicas e mais um conjunto de propostas para driblar os inconvenientes graves que esse tipo de controle traz.

Ainda assim, uma «execução negociada» só é viável se o ente público obrigado está disposto a colaborar. Se ele decide atravancar a implementação das medidas estruturantes (o que não é raro), o encanto do processo estrutural simplesmente se esvaece, caindo no velho inconveniente das penas pecuniárias (que só fazem sangrar os cofres públicos) e das ameaças de abertura de investigação criminal (que, quando muito, levam o agente público recalcitrante a sanções pífias). Com isso, a execução judicial da política pública se arrasta por anos mandato após mandato, avolumando-se em autos intermináveis e desmoralizando a justiça. Logo, não se pode fundar dogmaticamente o acerto de uma teoria com base num evento futuro, incerto e extraordinário. Dizer que o processo estrutural é bom porque o ente público colabora com a implementação da política pública equivale a dizer que a execução monetária é boa porque o devedor paga espontaneamente (?!). O eventual pagamento espontâneo não demonstra que o procedimento de execução monetária é bastante para invadir com agilidade o patrimônio do devedor; igualmente, a eventual colaboração com a implementação da política pública não demonstra que o procedimento do processo estrutural é bastante para extenuar qualquer teima do ente público. Execução civil é sançãoconsequência jurídica negativadesestímuloimposição a fórceps. O traço invariante do processo estrutural como fenômeno é a coerbilidade [= coerção em potência], ainda que nem sempre precise converter-se em coercitividade [= coerção em ato]. Ora, se as medidas coercitivas à disposição do juiz estruturador não se mostram eficientes, então o processo estrutural mais promete que cumpre. Se o sucesso do processo estrutural depende de uma ocasional «execução cooperativa ou comparticipativa», então ele não é propriamente uma categoria autônoma da ciência procedimental civil. Na realidade, ele é uma categoria extradogmática das técnicas de solução consensual de conflitos. Pertence a um saber interdisciplinar que mobiliza diferentes áreas (psicologia, antropologia, sociologia, filosofia etc.) para uma convivência dialogada e harmônica entre as partes envolvidas. Nesse sentido, o juiz do processo estrutural é um mediador que aposta todas as fichas em ferramentas como a escuta ativa e a pressuposição com o objetivo de construir relações de confiança entre os participantes e, a partir daí, lograr uma reestruturação negociada pragmaticamente bem-sucedida e, portanto, tolerável. Enfim, o processo estrutural só é legítimo como prática judicial se limitado a uma experiência alternativa de mediação pública interinstitucional præter constitutionem. Fora disso, nada mais é do que o Poder Judiciário com mania de grandeza.

Em nono lugar, os estruturalistas precisam justificar melhor qual a regra vigente no sistema jurídico positivo atual cuja incidência faz nascer a pretensão de direito material à reestruturação de instituições ou políticas. De um modo geral, os estruturalistas defendem que: i) no processo estrutural se pretende essa reestruturação para um melhor atendimento sistêmico aos direitos fundamentais; ii) direitos fundamentais se definem como princípios; iii) princípios descrevem um «estado ideal de coisas»; iv) se o «estado real de coisas» não corresponde ao «estado ideal de coisas», é porque a política ou a instituição promocional é ineficiente; vi) nesse caso, nasce a pretensão a uma política ou a uma instituição eficiente na promoção sistêmica do direito fundamental. Sem razão, porém. Direitos fundamentais são regras, não princípios. Grosso modo, a regra é um imperativo hipotético-condicional [«Se A, então B deve ser]; o princípio, um imperativo categórico [«C deve ser»]. Isso mostra que o princípio não tem autossuficiência operacional. Não têm normatividade. Afinal, ele não esclarece quando se aplica, nem quais as consequências decorrentes da sua aplicação. O princípio não tem hipótese de incidência [it.: fattispeciesituazione-tipo ipotizzata; al.: Tatbestand], nem consequência jurídica [it.: statuzioneconseguenza giuridica; al.: Rechtsfolge]. Para se realizar e, com isso, concretizar o «estado ideal de coisas» nele descrito, o princípio necessita da intermediação de regras. Daí por que não existe aplicação per saltum de princípios. Mesmo quando o juiz alega estar aplicando «diretamente» um princípio, em verdade ele está aplicando uma regra de intermediação oculta que ele próprio criou ao seu talante (para um aprofundamento do tema, v. nosso Princípio não é norma - 1ª parte. <https://cutt.ly/vnbxPEu>).

Por isso, quando a Constituição Federal de 1988 diz que «as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata» [art. 5º, § 1º], ela só faz explicitar o óbvio: essas normas são regras. Uma vez que os direitos fundamentais são direitos subjetivos de liberdade contra o Estado, eles defluem de regras com a seguinte estrutura lógico-proposicional: Se alguém está submetido à soberania do Estado brasileiro [= hipótese de incidência], então esse alguém tem pretensão ao exercício espontâneo de uma determinada autonomia individual [= consequência jurídica]. Em se tratando de direito fundamental de primeira dimensão, esse exercício espontâneo exige uma não interferência do Estado e, portanto, uma prestação passiva ou omissiva [= liberdade negativa]; em contrapartida, em se tratando de direito fundamental de segunda dimensão, exige-se uma interferência do Estado e, portanto, uma prestação ativa ou comissiva [= liberdade positiva]. Como se vê, regras sobre direitos fundamentais são regras primárias, de primeiro grau ou de conduta. Se o Estado interfere na autonomia dos indivíduos, ou se não interfere para a promoção dessa autonomia, resta saber quais são as regras secundárias, de segundo grau ou de sanção. Ora, como não poderia deixar de ser, todas elas se encontram previstas no próprio texto constitucional (mandado de injunção, mandado de segurança, habeas corpushabeas data etc.). Lendo-se o texto constitucional, porém, nele não se divisa qualquer regra que preveja como sanção a intromissão judicial em políticas ou instituições. Nem poderia haver regra desse quilate: ela atentaria contra o modelo de freios e contrapesos instituído expressamente na Constituição, desequilibrando o pêndulo da balança para o lado judiciário, desarmonizando a relação entre os Poderes e implantando um Estado de Juízes. No fundo, a teoria do «estado inconstitucional de coisas» é o mais do mesmo: uma teoria de empoderamento judiciário, que tenta conferir normatividade aos princípios e, assim, permitir que sejam «aplicados» mediante a criação paralegislativa inconfessa de regras intermediadoras pelo próprio juiz. Pois é justamente isto que os estruturalistas fazem: transformam os direitos fundamentais em «estados ideais de coisas», cotejam essa idealidade normativa com a realidade social, constatam um «desacordo ilícito» entre uma coisa e outra, inventam post causam as regras intermediadoras implicitamente violadas e, num passe de mágica, sacam da cartola a reestruturação de políticas ou instituições como «a» sanção imponível ao incumprimento dessas regras.

Em décimo lugar, os estruturalistas precisam explicar como se podem selecionar juízes capacitados para o controle judicial de políticas públicas. Afinal de contas, é certo que esse tipo de controle pressupõe uma expertise incomum a bacharéis em geral e a juízes em particular. Aliás, essa expertise sequer é exigida nos concursos de provas e títulos para a magistratura. Nem mesmo é comum que as escolas de magistratura capacitem os membros do Poder Judiciário no exercício satisfatório do referido controle. Ainda assim, o domínio completo do conjunto de habilidades necessárias para o desempenho da função judiciário-estruturante pressupõe um homem fantasticamente idealizado. Enfim, o a priori antropológico-cognitivo para a viabilidade do processo estrutural é irreal. Pudera: ser um «juiz governante» implica sair do seu nicho confortável, arriscar-se em escolhas acadêmicas complementares e ampliar-se em uma combinação polipericial tanto para as coisas da justiça quanto para as coisas do governo. Pressupõe ciência concentrada para o cálculo mediatório, para o cálculo adjudicatório e para o cálculo governamental. Para o exercício ordinário da judicatura tradicional, espera-se do magistrado que promova soluções técnico-jurídicas mediante a elaboração retrospectiva de juízos concepto-subsuntivos [= enquadramento do caso concreto na hipótese descritiva abstrata contida na regra] e juízos de estatuição [= extração das consequências jurídicas previstas na regra]. Em compensação, para o exercício extraordinário da judicatura estruturante, espera-se do magistrado que também promova soluções político-deliberativas mediante a elaboração prospectiva de juízos tópico-sobresuntivos. Ele deve: 1) constatar um desconformidade entre um «estado ideal de coisas» e o «estado real das coisas» [= atividade típica de juiz]; 2) inventar post causam as regras implícitas de intermediação supostamente violadas e definir como consequência jurídica comum a todas elas a reestruturação de determinada política ou instituição [= atividade típica de legislador]; 3) esquematizar ele próprio a forma e o conteúdo da estratégia de reestruturação da política ou da instituição [= atividade típica de administrador]; 4) prestar assistência a todos os envolvidos a fim de que cheguem porventura à tão desejada «implantação cooperativa ou comparticipativa» [= atividade típica de mediador].

Como se nota, o juiz pressuposto pelos estruturalistas é um verdadeiro super-homem. É praticamente um polímata renascentista. Trata-se de um sujeito todo-poderoso de racionalidade ilimitada, que - para além das vocações desejadas em um juiz tradicional - deve ter: preparo profissional para a mediação, pluralidade de conhecimentos, pensamento interdisciplinar, capacidade de agregar informações e emitir juízos mais integrados, plasticidade intelectual, ampliação cognitiva de caráter combinatório, inclinação para o diálogo multilateral, disposição para a desconstrução de impasses, senso de interrupção adequada, competência para a apreensão de interesses não externados, habilidade de coordenação técnico-racional de ações, capacidade de elaboração de diagnósticos públicos e de soluções criativas, vocação para a direção jurídica não autoritária de condutas, persuasão, flexibilidade, curiosidade, liquidez, improviso, escuta ativa, comprometimento, bom senso, paciência, domínio das linguagem político-administrativa e técnico-científica, repertórios conceituais diferentes do usual, etc. Com outras palavras, o juiz fictício do processo estrutural está condenado a ser um ativista despreparado. Porque uma coisa é certa: se existe um juiz com talento cumulativo para juiz, legislador, administrador público e mediador, então que ele seja Presidente da República ou Secretário-Geral da ONU. O Brasil e o Mundo precisam com urgência dos superpoderes gnósticos dele. Poder-se-ia eventualmente defender a substituição do juiz estruturador nas práticas em que ele não é versado. A tentativa de acordo poderia ser delegada a um experto em mediação pública multilateral; o monitoramento das etapas de implantação da política pública, a um special master. Não se pode esperar, entretanto, que em cada comarca interiorizada haja um profissional com tamanho grau de especialização. Sequer é fácil encontrá-los em grandes capitais. Tanto menos nos pequenos municípios das comarcas de entrância inicial, em que o processo estrutural costuma produzir os seus maiores estragos.

De uma vez por todas, o destino do processo estrutural deve ser decidido pelo Congresso Nacional. É na agora democrático-parlamentar que os representantes do povo devem discutir sobre a oportunidade e a conveniência de se entregar ao Poder Judiciário - mediante emenda constitucional - o controle externo das políticas públicas. É necessário ponderar, porém, que existem formas alternativas para esse controle que são menos restritivas à separação de poderes e à democracia. Deteriorar a harmonia entre os Poderes Constituídos, adulterar a lógica da legitimação democrática e hipertrofiar as atribuições judiciárias por via oblíqua são as atitudes mais cômodas, pois não se fazem por debate legislativa, mas por monólogo doutrinário. A imaginação jurídica, as propostas experimentais e os redesenhos institucionais devem ser vazados pela via creatrix do processo legislativo, não pelo iter descriptivus da dogmática jurídica. De constitutione ferenda se poderia pensar, por exemplo, em um colegiado multidisciplinar judicialiforme, permanente ou ad hoc, para a solução adjudicada de conflitos estruturais. O acionamento ficaria a cargo do Defensor do Povo. O colegiado seria composto por representantes da sociedade civil e dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. O Ministério Público interviria como «fiscal da ordem jurídica» [custos legis]. Mais: o colegiado teria poderes de coadministração especial temporária («intervenção branca») até que a reestruturação se conclua. Além disso, ele seria assessorado por um staff técnico concursado para o monitoramento das etapas de implementação, complementação ou correção de políticas públicas declaradas inexistentes, insuficientes ou deficientes. O colegiado competente para controlar políticas federais teria suas diretrizes fundamentais (recrutamento, prerrogativas, poderes, secretaria, funcionamento etc.) estabelecidas na Constituição Federal; o colegiado competente para controlar políticas estaduais e municipais, na respectiva constituição estadual. Entretanto, ao que parece, não há pressão política para que isso ocorra, uma vez que o investimento doutrinário-jurisprudencial no processo estrutural produz algum grau de distensão social. O progressismo doutrinário vai induzindo uma prática judicial desajeitada, mas com algum grau de funcionalidade, que esfria o debate público e acomoda os parlamentos. Na realidade, todavia, as energias intelectuais se deveriam voltar para a arquitetura de um modelo institucional inédito de soluções de problemas estruturais, não para um estica-e-puxa hermenêutico, que degrada a autonomia do direito e perpetra violações sistêmicas à Constituição e à lei. Pela força cômica das coisas, o processo estrutural gera inconstitucionalismo e ilegalismo estruturais. Em respeitável prefácio à obra coletiva Processos estruturais (Org. Sergio Cruz Arenhart et al. Salvador: Juspodivm, 2017), o Eminente Professor JOSÉ MARIA TESHEINER exerce uma honestidade intelectual ímpar: ao mesmo tempo em que exalta o processo estrutural, reconhece que o «fio condutor do processo estrutural [...] parece estar na ultrapassagem da separação dos poderes [...]» (p. 22). Antes, porém, convém avisar os ingleses. Afinal, o artigo 60, § 4º, III, da Constituição Federal de 1988, não admite nada tendente a abolir a separação dos Poderes.

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