Dr. Eduardo José da Fonseca Costa

GARANTIA DE LIMITE E GARANTIA DE CONTROLE

Limite e controle têm aparecido no discurso jurídico-garantístico como se fossem termos intercambiáveis. Às vezes, são tratados como sinônimos. Entretanto, com efeito, não o são. Tão somente como licença prosaica se pode tomar um termo pelo outro (a não ser que se fale em limite em sentido amplo, do qual limite em sentido estrito e controle sejam espécies).

Ao Pedro Lube Sperandio

Limite e controle têm aparecido no discurso jurídico-garantístico como se fossem termos intercambiáveis. Às vezes, são tratados como sinônimos. Entretanto, com efeito, não o são. Tão somente como licença prosaica se pode tomar um termo pelo outro (a não ser que se fale em limite em sentido amplo, do qual limite em sentido estrito e controle sejam espécies). Por isso, é chegada a hora de distingui-los e, dessa maneira, dar-se um salto de precisão semântica no vocabulário garantístico. Não raro, esse tipo de salto permite isolarem-se fatias da realidade do direito até então desapercebidas e, em consequência, separarem-se entre si regimes jurídicos até então confundidos. Ora, a palavra limite vem do latim līmes (genitivo singular līmitis) e significa «fronteira», «raia», «borda» (v. FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 6. ed. Rio de Janeiro, FAE, 1994, p. 316). Referia-se originalmente a um caminho que separava uma propriedade de outra. Assim, «passar dos limites» significava entrar em propriedade alheia. Esse caminho era «terra de ninguém» por onde ambas os vizinhos podiam transitar (cf. <http://etimologias.dechile.net/?li.mite>). Tratava-se, enfim, de um «espaço de 5 pés, que, no ato das fixações de terras se deixava livre, em derredor de cada lote de terreno» (SILVEIRA, Valdemar César da. Dicionário de direito romano. v. 2. São Paulo: José Bushatsky, 1957, p. 402).

No âmbito específico da garantística, a palavra limite transmite as ideias de negação de competênciacompetência negativaexclusão de competênciacompetência cortada e afastadaLimitar o poder significa, portanto, retirar dele tudo quanto nele não se queira e, desse modo, fazer com que sofra um recorte, um desenho, um contorno, uma configuração, uma conformação, um feitio, um alinhamento, um delineamento, um retalhamento. É o que se faz, v. g., instituindo-se uma imunidade: quando se livra alguém de se sujeitar a um determinado poder, retira-se uma parcela desse poder, restringindo-o, reduzindo-o, estreitando-o, apertando-o, diminuindo-o, abrandando-o, suavizando-o; amansando-o; à vista disso, ao redor da imunidade se estabelece um «espaço de 5 pés», que não se dá ao titular do poder invadir. É importante frisar que essa retirada de poder não apaga a imunidade. O que é retirado objetivamente do titular do poder é dado ao titular da imunidade «na mesma proporção e com a mesma moeda». Daí a existência de uma autêntica relação jurídica: de um lado, o titular de uma imunidade [immunity]; de outro, o titular da correlata «incompetência», «competência negativa» ou «falta de poder» [disability] (cf., p. ex., MORITZ, Manfred. Il sistema hohfeldiano dei concetti giuridici fondamentali. Apêndice à obra Wesley Newcomb Hohfeld. Concetti giuridici fondamentali. Turim: Giulio Einaudi, p. 166-167; COOK, Walter Wheeler. Hohfeld’s contributions to the science of law. Prefácio à obra Fundamental legal conceptions as applied in judicial reasonings and other essays by Wesley Newcomb Hohfeld. New Haven: Yale University Press; Londres: Humphrey Milford – Oxford University Press, p. 5).

Não sem razão, as imunidades tributárias se classificam como «limitações constitucionais ao poder de tributar» ou «garantias de limite contratributárias»: são retalhamentos ao poder tributário do Estado em conseguinte benefício do contribuinte. Da mesma forma, existem imunidades outras que consubstanciam, por exemplo: i) «limitações constitucionais ao poder de investigar» ou «garantias de limite contrainvestigatórias» [ex.: inviolabilidade da casa; inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas]; ii) limitações constitucionais ao poder migratório» ou «garantias de limite contramigratórias» [ex.: inextraditabilidade do brasileiro; inextraditabilidade de estrangeiro por crime político ou de opinião]; iii) «limitações constitucionais ao poder de desapropriar» ou «garantias de limite contraexpropriatórias» [ex.: inexpropriabilidade sem justa e prévia indenização em dinheiro; inexpropriabilidade da propriedade produtiva para fins de reforma agrária]. Contudo, as limitações constitucionais aos poderes do Estado – as chamadas garantias de limite – não se realizam apenas por imunidades, senão por todo e qualquer direito subjetivo fundamental de liberdade que, de forma geral, consista em uma pretensão a que o Estado se omita, não aja, não atue, nada faça, tolere. São os casos, por exemplo, da garantia da livre manifestação do pensamento, da garantia da individualização da pena, da garantia da livre associação, da garantia de reunião pacífica e da garantia de propriedade. Note-se que algumas dessas garantias constitucionais limitam poderes específicos do Estado (v. g., a garantia da individualização da pena, que é uma limitação restrita ao poder de punir); em contrapartida, outras limitam os poderes do Estado in genere (v. g., a garantia de propriedade, que é uma limitação muito mais ampla, que se faz a todo e qualquer poder oficial).

Por sua vez, a palavra controle é um galicismo. Em francês, controle vem de contre + rôle. De acordo com o Dictionnaire Quillet de La Langue Françaiserôle pode significar: «a) peça de pergaminho mais ou menos longa, enrolada ou não, sobre a qual se escreviam os atos, os títulos; b) registro oficial em que se escrevem os nomes; c) no âmbito da marinha, o rôle de uma equipagem é a lista do estado civil da equipagem» (apud MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública. 3. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 21). Na Idade Média, rôle era exatamente isto: um rolo de papel que se tirava como duplicata de um original. Logo, promover um contre-rôlecontrole, significava usar esse segundo rolo para, mediante confronto, comprovar-se a autenticidade eventual de um registro original. Em latim, esse método era chamado de contra rotulus (cf. <http://etimologias.dechile.net/?control>) (obs.: na língua inglesa, control exprime as ideias de mando, comando, domínio, dominação, senhorio, poderio; porém, para os propósitos de uma garantística, esse bloco de significados é desimportante). Daí por que, na língua francesa, a palavra controle exprime as ideias de sindicância, fiscalização, revisão, revista, vigilância, vistoria, supervisionamento, exame, inspeção, policiamento, verificação.

Pois são justamente essas ideias que fazem sentido garantístico. Para uma dogmática das garantias, controlar o poder significa: 1) no plano horizontal, instituir um sistema de vigilância recíproca entre os exercentes das funções administrativa, jurislativa e jurisdicional («check and balances»); 2) no plano vertical, dispor o cidadão de meios para impedir ou reprimir o exercício arbitrário do poder [ex.: habeas corpushabeas data, mandado de segurança, mandado de injunção, reclamação constitucional, reclamação ao Conselho Nacional de Justiça, reclamação às ouvidorias de justiça, reclamação ao Conselho Nacional do Ministério Público, advocacia]. Perceba-se que, no controle, a competência não é excluída, mas tão só supervisionada. Não se fala em competência negativa, mas em competência positiva, que se exerceu ou que se está prestes a exercer com arbítrio. Em suma, não se trata de excluir competência, mas de fiscalizá-la. Assim sendo, não se está propriamente diante de «limitações constitucionais ao poder», mas de «controlações constitucionais do poder» (que se podem chamar simplesmente de garantias de controle).

Contudo, é incomum a garantia constitucional de controle unifuncional, que seja exclusivamente contra-administrativa, contrajurislativa ou contrajurisdicional. Veja-se o mandado de injunção, que se concede «sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania» [CF/1988, art. 5º, LXXI]. Como se nota, trata-se de uma garantia de controle contra o arbítrio por omissão inconstitucional (sobre o arbítrio e as suas espécies, v. nosso Uma breve teoria jurídica do arbítrio. <https://cutt.ly/ARRqtiv>). Se a regulamentação faltante se deve fazer por ato administrativo-normativo do Poder Executivo, o mandado de injunção opera como uma garantia de controle contra-administrativa («controlação constitucional do poder de administrar»); por seu turno, se a regulamentação faltante se deve fazer por ato criativo do Poder Legislativo, o mandado de injunção opera como uma garantia de controle contralegislativa («controlação constitucional do poder de legislar»). Nesse sentido, o mandado de injunção é uma garantia de controle bifuncional. Da mesma maneira se passa com a reclamação ao Supremo Tribunal Federal contra ato administrativo ou decisão judicial que contraria súmula vinculante aplicável ou que indevidamente a aplica [CF/1988, art. 103-A, § 3º]: reclamando-se contra ato administrativo, maneja-se garantia de controle contra-administrativa («controlação constitucional do poder de administrar»); reclamando-se contra decisão judicial, garantia de controle contrajurisdicional («controlação constitucional do poder de judicar»). E assim se passa, outrossim, com o mandado de segurança, o habeas corpus, a advocacia etc. Todavia, há garantias unifuncionais, que se cingem a controlar um único e específico tipo de poder estatal. Vale mencionar a reclamação ao CNJ [CF/1988, art. 103-B, § 4º, III], exemplo de garantia de controle que só cabe contra ato administrativo do Poder Judiciário («controlação constitucional da função administrativo-judiciária»); nessa mesma linha está a reclamação ao CNMP [CF/1988, art. 130-A, § 3º, I], exemplo de garantia de controle que só cabe contra ato administrativo do Ministério Público («controlação constitucional da função administrativo-ministerial»); por fim, tem-se a ação popular [CF/1988, art. 5º, LXXIII], garantia de controle que só cabe contra ato administrativo «lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural».

O âmbito processual é um excelente exemplo de articulação complexa entre garantias de limite e garantias de controle. Para se bem compreender essa articulação, convém começar-se pela compreensão da garantia do «devido processo legal» [CF/1988, art. 5º, LIV]. Trata-se de exemplo crasso de garantia de limite amplíssima, que não se faz apenas a um único e específico poder do Estado. Ao mesmo tempo, o «devido processo legal» é garantia de limite: a) contra-administrativa [«devido processo legal administrativo» ou administrative due process], b) contralegislativa [«devido processo legal legislativo» ou legislative due process] e c) contrajurisdicional [«devido processo legal jurisdicional» ou judicial due process]. Em síntese, a vocação omni-abrangente do «devido processo legal» faz dele uma «limitação constitucional» de todo e qualquer poder estatal. É garantia de controle multifuncional, pois. É relevante sublinhar que o «devido processo legal» traz duas garantias de limite: 1) a garantia do processo; 2) a garantia da legalidade do processo. Em (1), limita-se o poder impedindo-se que ele atinja a esfera jurídica dos cidadãos sem o transcurso de um processo. Daí por que se fala em «devido processo», «processo de interposição obrigatória», «processo como interface necessária entre Estado e cidadão». Por processo se entenda fazzalarianamente um procedimento em contraditório, um procedimento funcionalizado ao debate, um procedimento direcionado a que nele se travem discussões. No processo se estrutura a sucessão das razões e contrarrazões aportadas dialeticamente pelos interessados, delimitando-se o thema disputandum ac decidendum, comprimindo-se o espaço orbital do Estado e, por conseguinte, diminuindo-se a possibilidade de movimentação arbitrária. Ademais, a cadência processual tende a produzir um ambiente deliberativo com estilo cognitivo sistemático, alta consciência cognitiva, alto controle consciente, baixa automaticidade, velocidade lenta, confiabilidade alta, alto esforço e baixa valência emocional. Mas unicamente o processo não basta.

Em (2), limita-se o poder impedindo-se que ele modifique o processo, que o limita. O «devido processo legal» é o devido processo da leiprevisto em leiregulado pela leiminudenciado pela lei em todas as suas etapas. É justamente a legalidade do processo que o protege. Afinal, não se pode admitir que o limitado capture e controle o limitante. A garantia de limite se frustraria. O processo deixaria de ser garantia de limite se o Estado pudesse interferir nele, flexibilizando-o. Se é verdade que o processo protege o cidadão do Estado, é também verdade que a legalidade do processo protege o processo do Estado; portanto, é verdade que a legalidade do processo protege o cidadão do Estado. Por esse motivo, o procedimento em contraditório é definível somente ex auctoritate legis, não ex auctoritate principis. A comissão de licitação não pode flexibilizar o procedimento oficial licitatório. A comissão de concurso público não pode flexibilizar o procedimento oficial concursal. A comissão disciplinar não pode flexibilizar o procedimento oficial disciplinar. O parlamento não pode flexibilizar o procedimento oficial legislativo. Juízes e tribunais não podem flexibilizar o procedimento oficial em juízo. Todavia, (1) e (2) tampouco bastam. É preciso que, para além da (1) garantia limitadora do processo e da (2) garantia limitadora da legalidade processual, se instituam (3) garantias limitadoras no processo.

No âmbito do processo em juízo, e. g., a constrição sobre juízes e tribunais deve intensificar-se por outras garantias contrajurisdicionais de limite: algumas delas explícitas no texto constitucional (juiz natural, contraditório, ampla defesa, publicidade, motivação das decisões judiciais, presunção de inocência penal, vedação à prova ilícita etc.); outras, implícitas (duplo grau de jurisdição, imparcialidade judicial, independência judicial, promotor natural, razoabilidade, proporcionalidade, presunção de inocência civil ou extrapenal, vedação à autoincriminação etc.). Entretanto, todas essas garantias de limite têm como habitat natural o processo, que por sua vez é igualmente uma garantia de limite. É preciso ressalvar, porém, que no processo também se manejam garantias de controle. A Constituição Federal dispõe o cidadão de meios para impedir ou reprimir o arbítrio jurisdicional que porventura ocorra dentro do processo [ex.: habeas corpus, mandado de segurança, reclamação constitucional, advocacia]. Trata-se das macrogarantias contrajurisdicionais de controle («controlações constitucionais do poder de judicar»). No entanto, elas convivem com microgarantias contrajurisdicionais de controle («controlações infraconstitucionais do poder de judicar»), de que são amostras os recursos em geral, a correição parcial, o pedido de reconsideração, a ação rescisória, a revisão criminal e a querela nullitatis insanabilis. Uma vez que o ambiente processual é palco especial tanto para garantias de limite quanto para garantias de controle, é recomendável que sempre se introduza a ciência garantística pela dogmática do processo. De algum jeito, isso faz do processo o rei das garantias.

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