O DEVIDO PROCESSO [CF/1988, ART. 5º, LV]: RESERVA LEGAL, DIREITO FUNDAMENTAL OU SUPERAFETAÇÃO?
A Constituição Federal de 1988 preceitua amiúde que o exercício de um certo direito fundamental seja realizado na «forma da lei» ou nos «termos da lei».
Ao Maestro Alvarado Velloso
Pelos seus 90 anos de idade
I
A Constituição Federal de 1988 preceitua amiúde que o exercício de um certo direito fundamental seja realizado na «forma da lei» ou nos «termos da lei». «Na forma da lei», v. g., são gratuitos o registro civil de nascimento e a certidão de óbito para os reconhecidamente pobres [art. 5º, LXXVI]. «Nos termos da lei», v. g., assegura-se o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais [art. 5º, LXXIX]. Desse jeito, a Constituição Federal permite que o âmbito de proteção desses direitos seja restringido pelo legislador ordinário federal. A essa permissão é dado o nome de reserva legal ou reserva de lei (sobre o tema, v., e. g., DIMOULIS, Dimitri e MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 8. ed. São Paulo: RT, 2021, p. 197 e ss.; PIEROTH, Bodo e SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. 2. ed. Trad. António Francisco de Sousa et al. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 135 e ss.). Seja como for, em qualquer uma dessas duas expressões – «nos termos da lei» e «na forma da lei» – se utiliza o termo «lei» em um sentido estrito. Trata-se de um ato formal do Poder Legislativo. Por meio dos seus representantes eleitos, os próprios cidadãos contraem o âmbito de proteção do direito fundamental, que lhes assiste. Afinal de contas, se todo poder emana do povo [CF/1988, art. 1º, parágrafo único], cabe ao próprio povo modular o poder modulando as áreas de proteção dos direitos fundamentais, que o limitam.
Diante dessas considerações, vale a pena um exercício salutar de dúvida: quando a Constituição Federal de 1988 estabelece que «ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal» [art. 5º, LIV], não estaria ela instituindo uma mera reserva de lei, não um direito fundamental autônomo, como sempre se supôs? A cláusula constitucional do «devido processo legal» não seria deveras uma reserva legal das garantias de liberdade e propriedade? Ela não preveria, simplesmente, que o Estado pode infligir restrições aos âmbitos de proteção da propriedade e da liberdade por intermédio de um «devido processo», que se estrutura na «forma da lei» ou «nos «termos da lei»? Não haveria aí uma permissão constitucional para que o Estado interfira nos âmbitos de proteção dos direitos fundamentais de liberdade e de propriedade, contanto que por meio de um processo [= o «devido processo»] e desde que todas as etapas desse processo sejam pormenorizadas por lei ordinária federal [= o «processo legal»]? Sob essa perspectiva, a expressão «cláusula constitucional do devido processo legal» não seria tão somente uma figura de linguagem? O inciso LIV do artigo 5º da Constituição não seria um dispositivo «oco», «vazio», «inane», já que não traz a definição intensional positiva de qualquer direito fundamental? Em suma, o destaque de um inciso inteiro para o «devido processo legal» não seria a expressão de uma mera técnica legislativa?
II
Entendendo-se que o devido processo é uma reserva de lei, não se pode escapar à conclusão de que ele deve ser regulado por lei ordinária federal. Tolerar que o processo seja regulável por ato infra– ou extra-legal significa tolerar que as áreas de proteção da liberdade e da propriedade possam ser restringidas por ato infra– ou extra-legal e, assim, possam ser limitadas per saltum pelos Poderes Executivo e Judiciário. Ora, se é reserva legal, então o devido processo deve ser da lei do Congresso Nacional, da vontade omnilateral do povo, que a expressa por meio dos seus representantes eleitos democraticamente [= devido processo legal]. Pois que não se trata de uma reserva regimental, o devido processo não deve ser dos regimentos internos dos tribunais, da vontade multilateral de desembargadores e ministros [= «indevido processo regimental»]. Tampouco o devido processo deve ser das resoluções do CNJ, da vontade oligolateral dos conselheiros seus, haja vista que não se trata de uma reserva resolucional [= «indevido processo resolucional»]. Muito menos deve ser o devido processo das portarias judiciais, da vontade unilateral do juiz, dado que não existe uma reserva portarial [= «indevido processo portarial»], nem deve ser a devido processo dos decretos, da vontade unilateral dos chefes de Poder Executivo, porquanto não existe uma reserva decretal [= «indevido processo decretal»].
Para que se possam restringir os âmbitos de proteção dos direitos fundamentais de liberdade e propriedade, o Estado-juiz deve desincumbir-se de um processo judicial regulado em lei ordinária federal, o Estado-administrador de um processo administrativo regulado em lei ordinária federal, o Estado-legislador de um processo legislativo regulado em lei ordinária federal (obs.: a bem da verdade, o processo legislativo não necessita de lei ordinária federal para se regular, mas de ato normativo interna corporis de igual hierarquia, que dispense a remessa do respectivo projeto ao Chefe do Poder Executivo para sanção ou veto; noutras palavras, basta o regimento interno da casa legislativa, que não tem qualquer relação de superioridade ou de inferioridade com a lei). Só o processo que se regula mediante lei ordinária federal, ou ato normativo de igual hierarquia editado pelo Congresso Nacional, pode ser considerado processo democrático (obs.: conquanto tenha força de lei ordinária federal, o art. 62, § 1º, I, b, da CF/1988, veda expressamente a edição de medida provisória sobre direito processual). O processo que se regula por intermédio de regimento interno de tribunal, resolução do CNJ, portaria de juiz ou decreto do chefe do Poder Executivo é um processo antidemocrático, aristocrático, autocrático, autoritário e, por conseguinte, inconstitucional (o que mostra, por exemplo, o absurdo de se admitir a interferência do STF no âmbito de proteção da liberdade individual através de inquérito fundado apenas em norma regimental, como são os casos dos chamados «Inquérito das Fake News» e «Inquérito das Milícias Digitais»).
III
Partindo-se da premissa de que o devido processo é uma reserva legal, concluiu-se que ele se pode regular exclusivamente por lei ordinária federal. Por esse ângulo, quando a Constituição Federal diz que «ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal», em vocábulos mais exatos ela está dizendo que «ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo regulado de forma detalhada por lei ordinária federal». Entretanto, esse dispositivo constitucional diz muito mais do que aparenta. É relevante lembrar que, em caso de guerra declarada, é possível haver no Brasil pena de morte [CF, art. 5º, XLVII, a, c. c. art. 84, XIX]. Logo, se em tempos ordinários o Estado pode privar os indivíduos da liberdade e dos seus bens, em tempos extraordinários de guerra pode privá-los outrossim da vida. É inimaginável, porém, impor-se o devido processo legal para se atingirem a liberdade e a propriedade e dispensá-lo para se atingir a vida. Não se pode sustentar que a liberdade e a propriedade sejam um majus e a vida um minus. Onde há a mesma razão, deve haver o mesmo direito [ubi eadem ratio, ibi idem jus]. Logo, quando a Constituição prescreve que «ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal», na realidade ela está prescrevendo que, «sem um devido processo minudenciado em lei ordinária federal, ninguém será privado da liberdade, da propriedade ou, em caso de guerra declarada, da vida». Não por outro motivo o Código Penal Militar (CPM) trata dos crimes militares em tempo de guerra, imputando a pena de morte para alguns deles [ex.: traição, espionagem, cobardia]; ademais, o Código de Processo Penal Militar (CPPM) regula a inflicção da referida pena, que se executa por fuzilamento.
Em vista disso, o devido processo brasileiro se comporta como uma reserva legal das garantias da liberdade, da propriedade e, nas entrelinhas, da vida, aproximando-se do due process of law norte-americano. Segundo a Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, «no person shall be […] deprived of life, liberty, or property, without due process of law». De acordo ainda com a Décima Quarta Emenda, «[…] nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law». Com o auxílio de uma argumentação a contrario sensu, a tradição doutrinário-jurisprudencial norte-americana tem entendido que os mencionados dispositivos autorizam a instituição da pena de morte (por todos, v. SCALIA, Antonin. A matter of interpretation. New Jersey: Princeton University Press, 1997, p. 46). O raciocínio é tão simples quanto irrefutável: se a Constituição dos EUA obriga o Estado a percorrer um devido processo legal antes de privar alguém da sua vida, é porque ela própria tem como premissa lógica a possibilidade jurídica da pena de morte. Seja como for, no Brasil, pode-se infligi-la unicamente em tempos de guerra declarada e mediante um devido processo regulado step by step por lei ordinária federal.
IV
Sem embargo, ficam ainda algumas dúvidas na metade do caminho. De acordo com o caput do artigo 5º da Constituição, garantem-se «aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]». Ora, se a Constituição assegura como bens jurídicos invioláveis a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade, por que o devido processo só é uma reserva legal dos direitos fundamentais à vida, à liberdade e à propriedade? Por falta de previsão constitucional expressa, o Estado está impedido de interferir nos âmbitos de proteção da igualdade e da segurança, mesmo que mediante um devido processo regulado passo a passo em lei ordinária federal? É possível asseverar que os âmbitos de proteção da igualdade e da segurança são «menos restringíveis, interferíveis, contraíveis ou limitáveis» que os âmbitos de proteção da vida, da liberdade e da propriedade? São hierarquizáveis entre si os bens jurídicos axiais apontados no caput do artigo 5º da CF/1988? Refletindo-se em sentido diametralmente oposto, pode o Estado interferir nos âmbitos de proteção da igualdade e da segurança de modo direto e abrupto, sem a intermediação de um devido processo legal?
Ora, a resposta só pode ser um sonoro NÃO. Lembre-se que a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade são direitos fundamentais per se. Mais: são direitos arquifundamentais. Constituem a fonte quíntupla de todos os demais direitos fundamentais (cf., p. ex., SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 66). Assim, analisando-se a estrutura do artigo 5º da Constituição Federal, divisa-se nela uma topologia repleta de significação: os direitos subjetivos arrolados nos incisos são desdobramentos daqueles arrolados no caput, tendo o caput como matriz e, portanto, como «mãe» (obs.: matriz, do latim matrix, deriva de mater, que significa «mãe», mais o sufixo –trix, que significa agente feminino; era usada para se referir ao útero e, dessa maneira, à fonte da vida). Se houvesse entre a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade uma «ordem de prioridade ou preponderância», por conseguinte todos os direitos fundamentais delas decorrentes se relacionariam entre si de forma hierárquica. Enfim, haveria direitos fundamentais «mais importantes» e direitos fundamentais «menos importantes» (o que seria um arrematado absurdo). Por causa disso, a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade têm entre si a mesma magnitude. Estão todos no mesmo plano. Têm o mesmo grau ou nível de relevância jurídica. São o arquétipo quinário formativo do catálogo dos direitos fundamentais. Por esse motivo, «sem um devido processo regulado em lei ordinária federal, ninguém será privado da liberdade, da igualdade, da segurança, da propriedade ou, em caso de guerra declarada, da vida» [CF/1988, art. 5º, caput, c. c. art. 5º, LIV, c. c. art. 5º, XLVII, a].
V
Falou-se há pouco em desdobramento. Ora, desdobrar é desembrulhar, desempacotar, desembalar, desfazer as dobras, estender o envoltório que estava dobrado para retirar dele um conteúdo. Logo, quando se afirma que vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade são direitos fundamentais dos quais todos os demais se desdobram, isso significa que todos eles estavam até então acondicionados na fonte quíntupla e foram trazidos a lume pelo processo de positivação jurídico-constitucional. Em todo o caso, quem interfere no invólucro, interfere em todos os conteúdos involucrados, em tudo que dele se pode desenfardar. Desse modo, se se exige o devido processo da lei democrática para se interferir nos direitos fundamentais originais (vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade), deve-se exigir igualmente o devido processo da lei democrática para se interferir nos direitos fundamentais derivados. Se assim não for, instituir-se-á uma hierarquia indevida entre todos eles, nada obstante eles todos tenham a mesma relevância. Não existe razão para o devido processo ser reserva legal de alguns direitos fundamentais e não ser de outros. Isso posto, o Estado-administrador, o Estado-legislador e o Estado-julgador devem desincumbir-se de um processo regulado em lei ordinária federal sempre que estiverem na contingência de interferir na área de proteção de algum direito fundamental. Daí por que o artigo 5º, LIV, da CF/1988, deve ser lido do seguinte modo: «sem um devido processo regulado em lei ordinária federal, ninguém será privado de qualquer dos seus direitos fundamentais, notadamente a liberdade, a igualdade, a segurança, a propriedade e, em caso de guerra declarada, a vida».
Contudo, se o devido processo é reserva legal de todos os direitos fundamentais, já não se pode mais alegar que ele seja propriamente uma reserva legal. Há uma mudança completa de direção. Na reserva de lei em sentido mais preciso, ao Estado se confere o poder de limitar a área de proteção de um direito fundamental específico (nesse caso, o direito fundamental específico é o prius lógico; a interferibilidade estatal em seu âmbito de proteção, o posterius). Por sua vez, no devido processo legal, confere-se ao cidadão o direito a que entre ele e o Estado se interponha um procedimento em contraditório minudenciado em lei, limitando-se, portanto, o poder do Estado de limitar a área de proteção dos direitos fundamentais em geral (nesse caso, a interferibilidade do Estado no âmbito de proteção dos direitos fundamentais em geral é o prius lógico; a interferibilidade só por meio do devido processo legal, o posterius). O devido processo legal não tem mero valor instrumental, mas valor em si, sendo ele próprio um direito fundamental autônomo. É o direito fundamental de limitar quem limita. Não sem motivo a Constituição lhe destinou um inciso destacado no rol dos direitos fundamentais típicos ou expressos. Esse destaque tem uma enorme significância analítica, hermenêutica e pragmática. Diz sobre a natureza íntima do devido processo legal.
VI
Já se poderia encerrar o presente texto. Afinal, já se demonstrou que o devido processo legal é um direito fundamental autônomo, não uma mera reserva legal das garantias da liberdade e da propriedade. No entanto, ainda se pode falar mais sobre o inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Talvez não haja dispositivo constitucional cuja literalidade diga menos do que pretende («minus dixit quam voluit»). De fato, sem que exista um devido processo regulado etapa a etapa em lei ordinária federal, o Estado não poderá interferir na área de proteção de qualquer direito fundamental. No entanto, de nada adiantaria processualizar a interferência do Estado em determinado direito fundamental se, ao fim e ao cabo, essa interferência se mostrasse irrazoavelmente desmesurada, desmedida, descomedida, desenfreada, excessiva, exagerada, desproporcional. O termo interferência tem duplo conteúdo: i) a ação de interferir; ii) o produto final da ação de interferir. Portanto, não basta qualificar a ação-de-interferir, comedindo-a por meio de uma procedimentalizacão [= devido processo legal procedimental]: é preciso, igualmente, qualificar o resultado-da-ação-de-interferir, comedindo-o mediante proporcionalização [= devido processo legal substancial]. Assim, o art. 5º, LIV, da Constituição, «modela» tanto a interferência-ação quanto a interferência-resultado. Pudera: há entre o processo e a proporcionalidade uma indisfarçável unidade material-funcional. Ambos são aspectos distintos de uma única e mesma coisa. São aquilo que a doutrina liberal alemã chama de «limite dos limites» [Schranken-Schranken] e, por isso, comedem a atividade interventiva do Estado. Ambos instituem um algoritmo, uma sequência, uma operação, um passo a passo, um encadeamento, um protocolo, uma cadência para a contenção do arbítrio estatal: o processo moderando a interferência-ação; a proporcionalidade, a interferência-resultado. Isso porque o processo é antônimo perfeito do impulsivo; a proporcionalidade, do exorbitante. E o impulsivo e o exorbitante são expressões do irracional.
Nesse sentido, o processo e a proporcionalidade são conquistas civilizatórias permanentes contra o irracionalismo, o qual não raro atenta os exercentes do poder. Logo, o inciso LIV do artigo 5º da CF/1988 deve ser lido da seguinte forma: «o Estado não interferirá, de maneira desproporcional e sem um devido processo regulado em lei ordinária federal, nos âmbitos de proteção dos direitos fundamentais, sobretudo da liberdade, da igualdade, da segurança, da propriedade e, em caso de guerra declarada, da vida». Isso mostra que a garantia da proporcionalidade é, na verdade, uma regra jurídico-constitucional de direito fundamental, não um princípio nem um postulado aplicativo-normativo. No Brasil, a sua sedes materiae é o art. 5º, LIV, da CF/1988. Tem o ônus de pré-questionar esse dispositivo constitucional todo aquele que pretenda interpor recurso extraordinário para debelar um ato desproporcional do poder público. Daí por que a proporcionalidade nem de longe decorre «dos princípios da liberdade e da igualdade» (sem razão, portanto: ÁVILA, Humberto. O que é o «devido processo legal». Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. v. 2. Org. Fredie Didier Jr. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 356; MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 616).
VII
Poder-se-ia falar muito mais sobre a garantia do «devido processo legal». Talvez seja o dispositivo constitucional com a maior carga semântica. Entretanto, tudo aquilo que já foi dito neste pequeno artigo, por ora, basta para que a aludida garantia seja descartada como uma reserva legal e seja compreendida, no final das contas, como um direito fundamental autônomo. Sem embargo, há quem declare que o «devido processo legal» é apenas e tão somente uma síntese de todas as garantias constitucionais do processo. Enfim, há quem assevere que ele é uma suma do corpus garantístico-processual. O inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 seria, desse modo, uma «superfluidade», uma «desnecessidade», uma «superafetação», um «direito fundamental subsidiário» (cf., p. ex., TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 84). Sem razão, porém. De maneira geral, essa visão é comungada pela doutrina hiperpublicista, que vê o processo como um instrumento, uma ferramenta, um utensílio ou um método a serviço do poder do Estado, que se salpica aqui e ali de algumas garantias. Todavia, na realidade, o processo é uma garantia de liberdade em si [= a garantia do processo], que existe para além das garantias de liberdade outras, que o permeiam [= as garantias no processo]. Não há qualquer superposição entre a garantia-do-processo e as garantias-no-processo. Estas não são uma decorrência daquela. Cada qual tem o seu específico âmbito de proteção, o seu específico espaço circunscricional e, portanto, o seu específico préstimo.
Decididamente, a cláusula constitucional do «devido processo legal» não é um excesso prescindível. Ao contrário: trata-se de um texto-base insubstituível, a partir do qual se instituem, dentre outras coisas: 1) a garantia da legalidade procedimental [= o devido processo da lei ordinária federal]; 2) a garantia da proporcionalidade [= o devido processo material ou substantivo]; 3) a garantia do processo legislativo [= o devido processo legislativo]; 4) a função garantista do processo mesmo (e, consequentemente, o desacerto do instrumentalismo processual em qualquer das suas variantes) [= o devido processo-garantia]. Ora, nada disso se poderia extrair dos demais incisos que compõem o catálogo dos direitos fundamentais. Logo, quando se nota que a cultura processual dominante no Brasil mal chega a qualquer uma dessas quatro conclusões, também se nota que ela se assenta sobre bases absolutamente autoritárias, as quais despotenciam toda a força antiarbitrária do «devido processo legal». Infelizmente, o inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 ainda é um dispositivo incompreendido e subexplorado, quando não deturpado, a despeito dos seus 37 anos de vigência. São 37 anos em que a processualística nacional se entorpece num sono instrumentalista.