PODER JUDICIÁRIO NÃO É ÓRGÃO DE CONSULTA
Raros são os dispositivos que se equivalem ao devido processo legal [CF/1988, art. 5º, LIV] em patrimônio semântico. Nada obstante, a cláusula constitucional ainda guarda consigo um ativo estratégico de sentidos inexplorados.
Ao Dr. Pedro Martins Costa Jappur,
Nobre Procurador da República
1. Raros são os dispositivos que se equivalem ao devido processo legal [CF/1988, art. 5º, LIV] em patrimônio semântico. Nada obstante, a cláusula constitucional ainda guarda consigo um ativo estratégico de sentidos inexplorados. Sob uma espessa camada de esquecimento, encontram-se grandes reservas significativas com «potencial subversivo» para impulsionar um processo democrático e, por conseguinte, uma jurisdição republicana. Não sem razão, a doutrina instrumentalista soterra os extratos interpretativos ultraprofundos do inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal, mantendo-lhe a compreensão em nível bastante raso. Um exemplo de superficialidade é tomar o devido processo legal como uma «superafetação», uma «garantia subsidiária», uma «síntese» de todas as garantias processuais. Até agora, o único esforço relevante para se desenterrarem as possibilidades normativas todas do devido processo legal foi feito pela Suprema Corte dos EUA no julgamento do caso Lochner v. New York (1905), em que se refratou a garantia constitucional em duas macrodimensões: o procedural due processe o substantive due process. Afora isso, «não há nada novo debaixo do sol» [Ec 1:9].
2. De maneira genérica, em seu sentido mais comum, o devido processo legal se entende como uma proibição. Impede-se o Estado de restringir in concretoas esferas jurídicas subjetivas sem empregar um processo. O uso do processo é conditio sine qua non para a interferência estatal nas esferas jurídicas subjetivas. Nessa relação, o processo é o termo subordinante; a interferência do Estado, o termo subordinado. Daí por que a garantia do processo assume, aqui, um aspecto adverbial: protegem-se os cidadãos impondo-se ao Poder Público que interfira só processualmente nas suas esferas jurídicas subjetivas. Interferência oficial válida é aquela que se realiza de forma processualizada. Em suma, o processo é enxergado como um complemento circunstancial, o qual expressa o único modo legítimo para o Estado romper a chamada «incolumidade das esferas jurídicas» (Pontes de Miranda). Assim, quando alguém afirma ser titular do direito ao devido processo legal, afirma ser titular do direito subjetivo a um processo que limite a atividade limitadora estatal. Nessa dimensãosubjetivo-situacional, o devido processo legal funciona como um «limite dos limites», uma «restrição das restrições», uma «interferência nas interferências» [Schranken-schranken].
3. No entanto, uma alternativa de elucubração interpretativa se avista no horizonte: um novo sentido para o devido processo legal a partir de uma viravolta de pensamento. Ora, se é verdade que o Estado não pode restringir in concretoas esferas jurídicas subjetivas sem se utilizar de um processo, é também verdade que o Estado pode utilizar-se do processo apenas para restringir in concretoas esferas jurídicas subjetivas. Enfim, se é verdade que o uso do processo é condição indispensável para a interferência estatal nas esferas jurídicas subjetivas, é também verdade que a interferência estatal em esferas jurídicas subjetivas é condição indispensável para o uso do processo. Nesse caso, o que se tem é a intervenção estatal como termo subordinante e o processo como termo subordinado. Ao devido processo legal se confere, destarte, um aspecto verbal. O Estado só está autorizado a processar interventivamente in concreto et in casu. Não lhe é dado, por conseguinte, valer-se do processo para atuar in abstracto et in thesi. Desse modo, o devido processo legal ganha uma outra dimensão, mais objetivo-institucional, que esculpe a organização e o funcionamento do Estado em suas bases mais primordiais e, por isso, se coloca ao lado da separação de poderes, em não raras vezes detalhando-a e reforçando-a.
4. Ante o exposto, não é possível o Estado fazer uso do processo para promover, v. g.: a) a interferência no ordenamento jurídico com a finalidade de nele se adicionarem, modificarem ou suprimirem regras; b) a deseficacização erga omnesde regra jurídica; c) a modulação erga omnesda eficácia de regra jurídica nos planos pessoal, espacial ou temporal; d) a definição de teses jurídicas abstratas; e) a reestruturação de políticas públicas ou de instituições; f) a resposta a consultas. Afinal, em nenhuma dessas situações o processo servirá ao Estado para interferir in concreto et in casu em uma determinada esfera jurídica subjetiva. Decerto, o uso do processo para uma atuação estatal in abstracto et in thesi será possível somente nas hipóteses previstas na Constituição Federal de 1988. São os casos do processo legislativo e do processo objetivo de controle de constitucionalidade. Já tratei alhures do problema do uso processual para a definição de teses jurídicas abstratas [CPC, art. 927, III] e para a reestruturação de políticas públicas e instituições. No presente texto, cingir-me-ei ao problema das consultas ao Judiciário.
5. Nas consultas à Administração Pública, não se exige um processo, isto é, um procedimento em contraditório. A relação jurídica levada à consulta se dá entre o administrado consulente e o administrador público consultado, não havendo razão para um debate entre ambos. Entretanto, visto que o juiz é sempre um terceiro imparcial, a eventual consulta que se lhe fizesse deveria contar com a presença das duas partes da relação jurídica e com a instauração de um processo para lhes propiciar o debate, ferindo-se a dimensão objetivo-institucional do devido processo. Nos Estados Unidos, a proibição de consulta ao Poder Judiciário tem sido respaldada na Seção 2 do Artigo III da Constituição, que atribui à jurisdição norte-americana o processamento e o julgamento de controvérsias («controversies») e casos («cases»). É a chamada Standing Doctrine(v., p. ex., Flast v. Cohen, 392 U. S.83, 94, 1968). Em boa parte, ela explica porque a tradição jurídica dos EUA é refratária ao controle de constitucionalidade in abstracto et in thesi (se bem que a própria Constituição de 1787 não preveja esse jeito de se exercer a jurisdição constitucional).
6. Com acerto, o problema é resolvido em âmbito jurídico-constitucional, pois impedir juízes e tribunais de responderem a consultas diz respeito aos limites da função jurisdicional. No Brasil, porém, a formulação de consultas ao Judiciário tem sido resolvida como um problema de «falta de interesse de agir necessário». Ora, não demanda muito tirocínio perceber que a sanação judicial de uma dúvida sobre a interpretação de um texto de direito positivo vigente pode ser bastante útil para o desenvolvimento de uma atividade pública ou particular qualquer, embora se trate de uma utilidade mais mediata, indireta, reflexa. Na verdade, o problema é de impossibilidade jurídica do pedido (figura que o CPC/2015 fez o desfavor de abolir). Por força da dimensão objetivo-institucional do devido processo, a Constituição Federal de 1988 proíbeo Poder Judiciário de resolver conflitos conjecturais ou hipotéticos. Compete-lhe apenas resolver conflitos concretos e particularizados que concirnam a esferas jurídicas subjetivas (individuais ou coletivas).
7. Sem embargo, não é só a dimensão objetivo-institucional do devido processo que veda a resposta jurisdicional a consultas. De acordo com o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição, nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. Também aqui se verifica uma dupla dimensão: 1) subjetivo-situacional [= inafastabilidade da jurisdição como direito subjetivo de liberdade]; 2) objetivo-institucional [= inafastabilidade da jurisdição como pilar axial da organização e do funcionamento do Estado]. 1) Na primeira dimensão, obriga-se o Estado-jurisdição a se abrir à apreciação de tudo quanto seja lesão ou ameaça a direito subjetivo; em outras palavras, a existência de lesão ou de ameaça a direito subjetivo reclama a apreciabilidade jurisdicional. 2) Por outro lado, na segunda dimensão, obriga-se o Estado-jurisdição a se fechar à apreciação de tudo quanto não seja lesão ou ameaça a direito subjetivo; em outros termos, a apreciabilidade jurisdicional reclama a existência de lesão ou de ameaça a direito subjetivo. Logo, não pode haver apreciação jurisdicional de pedido de consulta, conselho, orientação, informação ou diagnóstico jurídico.
8. Nota-se que a dimensão objetivo-institucional do devido processo legal e da inafastabilidade da jurisdição imprimem um refinamento à separação de poderes. Sob o ângulo jurídico-conceitual, pode-se asseverar sem pormenores as atividades do Estado se dividem em três espécies: i) jurislação[= criação do direito]; ii) administração [= aplicação do direito por quem seja parte da própria relação discutida]; iii) jurisdição[= aplicação do direito por quem seja terceiro à relação discutida]. Todavia, sob o ponto de vista jurídico-positivo, essa divisão sofre uma especificação. No sistema de direito constitucional positivo brasileiro vigente atual, o Estado-administrador pode aplicar o direito a casos tanto reais quanto hipotéticos; por outro lado, o Estado-juiz só pode aplicar o direito a casos reais. Por exclusão, torna-se impossível o Estado-juiz aplicar o direito a casos hipotéticos. Once and for all, juízes e tribunais não são agentes opinantes. Devem rejeitar toda e qualquer formulação – formal ou informal, intra muros ou extra muros – de pedido de consulta. Não existe judicatura de parecer.
9. Todas essas considerações reclamam a abertura de um pequeno parêntesis, uma vez que abrem uma interessante reflexão conceitual. Como já visto, a Constituição prevê posições jurídicas subjetivas ativas pro civitas, que podem ademais assumir um caráter objetivo-institucional, consubstanciando, desse jeito, um elemento essencial da organização e do funcionamento do Estado. Tomem-se como amostras as garantias do devido processo legal[CF, art. 5º, LIV] e da inafastabilidade da jurisdição[CF, art. 5º, XXXV], cujo aspecto objetivo-institucional impede o Estado de aplicar o direito a casos hipotéticos ou conjecturais e, portanto, de responder a consultas. Por sua vez, a Constituição prevê elementos essenciais da organização e do funcionamento do Estado, que podem inclusive assumir um caráter subjetivo-situacional, consubstanciando, dessa maneira, posições jurídicas subjetivas ativas pro civitas. São os exemplos da advocacia [CF, art. 133] e das prerrogativas funcionais de imparcialidade e independência da magistratura [CF, art. 95], cuja faceta subjetivo-situacional enseja em favor dos cidadãos as garantias antiarbitrárias da advocacia, da imparcialidade e da independência judiciais (que integram o rol dos direitos civis pelo vaso comunicante do § 2º do artigo 5º da CF).
10. Assim, há uma fatia interseccional do direito objetivo constitucional em que as garantias dos cidadãos e os pilares organizativos axiais do Estado são face e contraface de uma única e mesma coisa. As garantias e os pilares organizativos axiais do Estado são conceitos fundamentais da dogmática constitucional, representando duas forças opostas (liberdade versuspoder, respectivamente), mas complementares e inseparáveis, que regem o fenômeno da regulação jurídica do poder político, sem qualquer hierarquia entre elas. Dentro do rol das garantias existem in potentia pilares organizativos axiais do Estado, tal como dentro do rol dos pilares organizativos axiais do Estado existem in potentiagarantias, o que mostra a interdependência e o equilíbrio dinâmico entre as duas categorias. Mais: mostra que essa categorização se faz por conveniência, porquanto uma simples mudança de perspectiva permite visualizar-se uma categoria a partir da outra. Daí o erro – tão usual nos dias de hoje – de se dizer que o estudo dos direitos fundamentais é mais importante que o dos pilares organizativos axiais do Estado. Sem respeito à separação de poderes, a lista dos direitos fundamentais não passa de um papel timbrado.
11. Dentro dessa fatia interseccional se encontra a separação de poderes[CF, art. 2º, c. c. art. 60, § 4º, III], que é tanto um pilar organizativo fundamental do Estado [= dimensão objetivo-institucional] quanto uma garantia individual de liberdade dos cidadãos [= dimensão subjetivo-situacional]. Também ela poderá ser violada caso se facultem consultas amplas, gerais e irrestritas ao Judiciário. A atividade administrativa se orienta por um emaranhado normativo-textual (Constituição, leis, decretos, portarias etc.) e, por isso, é efetuada mediante um alto exercício técnico de interpretação jurídica; logo, os seus diferentes procedimentos precisam apoiar-se pari passu em pareceres especializados, precedidos de estudo e pesquisa sobre legislação, doutrina, jurisprudência dos tribunais e pareceres precedentes, visando ao controle interno de validade dos atos praticados, à consecução dos interesses tanto da coletividade (interesse público primário) quanto da Administração (interesse público secundário), bem como à prevenção do gestor público contra eventual responsabilização. Outrossim, para o exercício regular das suas funções legislativas típicas, parlamentares e comissões se apoiam amiúde em pareceres técnico-jurídicos, os quais lhes viabilizam analisar projetos de lei, projetos de decreto legislativo, indicações, requerimentos, recursos e propostas de fiscalização e controle.
12. Ora, a conclusão é patente: a formulabilidade de consultas a juízes gera o risco grave de se substituírem com frequência os consultores administrativo-legislativos por «magistrados consultores», «consultores de toga», «juízes conselheiros», «super-assessores vitalícios e inamovíveis». Basta que um interessado se desagrade de um parecer interno oficial que se emita na seara administrativo-legislativa e se socorra da via judicial para a obtenção de um parecer externo substitutivo, ou então que o Estado-administrador ou o Estado-legislador enjeitem suas próprias consultorias internas e as substitua pelo Estado-jurisdição. O pior de tudo é defender essa formulabilidade de iure condito, sem se saber se pareceres externos judiciais são vinculativos, ou se os agentes políticos podem desconsiderá-los por razões de conveniência e oportunidade. Seja como for, há o perigo de uma intromissão judiciária desmesurada nos quotidianos parlamentar e governamental, direcionando-lhes escolhas discricionárias (v. g., a definição de políticas públicas) e deteriorando a autonomia e a independência dos Poderes Executivo e Legislativo.
13. Uma consultabilidade judicial irrestrita pode produzir como efeito colateral indesejado uma explosão de pareceres judiciais externos e, em consequência, um esvaziamento da advocacia consultiva privada. É importante frisar que um dos objetivos axiais desse tipo de advocatícia é desafogara máquina judiciária. Por meio de um serviço técnico de aconselhamento, recomendação e orientação fundamentados na legislação, na doutrina e na jurisprudência dos tribunais, o consultor particular antecipa-se aos problemas jurídicos, minimizando os riscos de que surjam ou se agravem e, ao mesmo tempo, conferindo previsibilidade, estabilidade e confiança à atividade privada. Para isso, ele elabora planejamento (tributário, trabalhista, societário, sucessório, ambiental etc.), concebe e revisa procedimentos internos e documentos (contratos, regulamentos, estatutos etc.), encontra soluções amigáveis para conflitos e, assim, previne indivíduos e empresas contra judicializações (de ordinário, bastante custosas). Portanto, incentivar a consultabilidade judicial implica desincentivar um dos mais nobres oficiais advocatícios, que auxilia na redução da sobrecarga judiciária.
14. Ademais, a imparcialidade poderá ser violada se se permitirem consultas ao Poder Judiciário. A comparticipação do magistrado nem uma atividade administrativa ou legislativa o inclina a ratificar o resultado final [ex.: um concurso público, uma licitação, uma desapropriação, uma punição disciplinar, uma lei, uma política pública] e a rejeitar as impugnações que porventura se formulem em juízo. Noutros termos, o juiz pode enviesar-se à medida que emita pareceres no curso de uma certa atividade administrativo-legislativa e, em consequência, comprometer a sua neutralidade psíquico-cognitiva em eventuais processos futuros, adquirindo a chamada heurística de confirmação (que é a tendência a se priorizarem informações que apoiem uma hipótese inicial e se ignorarem informações que a contradigam). Não se pode esperar isenção de um juiz que, tendo tomado partido ou dado conselhos antecipados ao administrador público ou ao legislador, deixou de ser um terceiro imparcial e para se tornar um copartícipe da empreitada pública. Nem é de se esperar que outros juízes, movidos pelo esprit de corps, nulifiquem o resultado final de uma atividade administrativo-legislativa que se haja amparado em pareceres externos de um colega de profissão de mesma hierarquia.
15. Para que as consultas ao Poder Judiciário não explodam e sejam juridicamente possíveis, é imprescindível que 1) tenham previsão constitucional expressa, 2) estejam concentradas num único órgão jurisdicional (de preferência, um tribunal de cúpula), 3) sejam formuláveis por um rol de legitimados bastante acanhado, 4) concirnam a pouquíssimos temas, 5) obedeçam a formas e prazos rígidos e 6) se saiba de antemão se o parecer judicial será vinculativo ou facultativo. Em Portugal, e. g., a consulta ao Poder Judiciário: 1) está prevista nos Artigos 278º e 279º da Constituição de 1976; 2) concentra-se no Tribunal Constitucional; 3) é formulável, precipuamente, pelo Presidente da República; 4) pode ter como objeto a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional que lhe tenha sido submetido para ratificação; 5) deve ser requerida no prazo de oito dias a contar da data da receção do diploma e o Tribunal deve pronunciar-se no prazo de vinte e cinco dias, o qual pode ser encurtado pelo Presidente por motivo de urgência; 6) obriga o Presidente a vetar o diploma caso lhe seja pronunciada a inconstitucionalidade; porém, o tratado pode ser ratificado se a Assembleia da República aprová-lo por dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções. Igualmente, outras constituições franqueiam ao Presidente consultar órgãos decisórios de cúpula – em geral, tribunais constitucionais ou cortes supremas – acerca da constitucionalidade de leis ainda não promulgadas (ex.: Constituição da Irlanda de 1937, artigo 26; Constituição da Índia de 1950, artigo 143; Constituição da África do Sul de 1996, art. 79, 5, b).
16. No Brasil, não vige nada similar. Daí por que não se admite, aqui, consulta ao Poder Judiciário. No entanto, há quem mencione o inciso XII do artigo 23 do Lei 4.737, de 15 de julho de 1965 (o Código Eleitoral), o qual atribui ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) competência privativa para «responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político». Convém sublinhar, todavia, que a Justiça Eleitoral responde a essas consultas no desempenho de competência administrativa, não jurisdicional. Além de processar e julgar as causas eleitorais penais e extrapenais [= competência jurisdicional], ela organiza as eleições e sobre elas exerce poder de polícia [= competência administrativa]; destarte, é nessa específica condição que, antes das eleições, é consultada in thesiacerca de regras jurídico-eleitorais. Isso significa que à consulta não pode subjazer qualquer relação jurídica de direito eleitoral in concreto, que seja atual ou potencialmente controversa. É devido que a consulta judiciário-eleitoral seja, em essência, administrativo-eleitoral, jamais jurisdicional-eleitoral. O consultor deve agir como gestor da administração eleitoral, não como árbitro da jurisdição eleitoral. Se assim não for, o parecer da Justiça Eleitoral (que, aliás, é vinculante) afrontará todas as regras constitucionais já mencionadas ao longo do presente texto.
17. A proibição de se formularem consultas ao Poder Judiciário sempre foi tão inconcussa que já deveria ser um não tema. Seria preciso editar emenda constitucional para se admitir no Brasil a possibilidade de pareceres judiciais externos. Contudo, como não poderia deixar de ser, para instituir desde já a «consultoria togada», os próceres do ativismo judicial têm usado a confusão diabólica entre modelos de constitutione latae modelos de constitutione ferenda. Com isso, engrossa-se o bloco das teses judiciocráticas (processo estrutural; inquisitivismo probatório; cargas probatórias dinâmicas; cooperação processual; regimento interno de tribunal e resolução do CNJ como fontes do direito processual; precedentes obrigatórios; flexibilização procedimental; princípios como normas, direitos fundamentais como princípios; direitos fundamentais como metas governamentais; «proporcionalidade», «razoabilidade» e «eficiência» como fatores de relativização de direitos fundamentais; etc. etc. etc.). Todo esse bloco está direcionado ao atingimento de dois propósitos básicos: a primazia do juiz sobre as partes e a primazia do Judiciário sobre o Executivo e o Legislativo. Para tanto, tenta-se reduzir a pó as ideias-força de separação de poderes e processo-garantia. Pudera: elas são as duas principais barreiras jurídicas contra a tirania.


