Dr. Eduardo José da Fonseca Costa

PRINCÍPIO NÃO É NORMA (10ª PARTE)

A relação entre um princípio de direito e as regras jurídicas que o concretizam não é bi-implicativa. É possível que um princípio, que entrecruze várias regras e nelas esteja subentendido, seja in-ferido a partir delas [∃ r : r1, r2, r3, r4, r5…, rn → P]. Isso se chama indução amplificadora. No entanto, não é possível que essas mesmas regras sejam des-dobradas, de-rivadas, de-monstradas ou de-duzidas more geométrico a partir desse mesmo princípio [∄ P : P → r1, r2, r3, r4, r5, …, rn].

Ao Josué Modesto Passos,

Insigne Jurista e Magistrado

A relação entre um princípio de direito e as regras jurídicas que o concretizam não é bi-implicativa. É possível que um princípio, que entrecruze várias regras e nelas esteja subentendido, seja in-ferido a partir delas [∃ r : r1, r2, r3, r4, r5…, rn → P]. Isso se chama indução amplificadora. No entanto, não é possível que essas mesmas regras sejam des-dobradas, de-rivadas, de-monstradas ou de-duzidas more geométrico a partir desse mesmo princípio [∄ P : P → r1, r2, r3, r4, r5, …, rn]. Não existe uma linha de evidência, que, trilhada sem desvios, permita sair-se desse princípio e chegar-se necessariamente a essas mesmas regras. O caminho que leva do princípio até as regras que o densificam não respeita uma metódica. Não existe um procedimento objetivo-racional, que sirva de percurso inequívoco, unívoco, único e seguro para que qualquer pessoa parta do mesmo princípio e atinja disciplinadamente sempre o mesmo conjunto de regras. Saber de onde se parte não garante saber onde se chega. Com efeito, o trajeto que interliga os dois extremos é uma escolha discricionária. O hífen do par princípio-regra denota uma opção livre, embora criteriosa e informada. Dentre as várias possibilidades deontológicas de se densificar um princípio de direito, todas elas igualmente válidas, escolhem-se as regras jurídicas entendidas como as mais convenientes, oportunas e praticáveis. Enfim, a concretização de princípios por meio de regras é marcada pelo signo da preferência.

Para concretizar um determinado princípio de direito, o agente α preferirá o conjunto de regras jurídicas A [x1, x2, x3, x4, x5, x6, x7, x8]; o agente β, o conjunto de regras jurídicas B [y1, y2, y3, y4, y5, y6, y7]; o agente γ, o conjunto de regras jurídicas C [z1, z2, z3, z4, z5, z6]; o agente δ, o conjunto das regras jurídicas D [t1, t2, t3, t4, t5]. Por acaso esses quatro conjuntos normativos poderão assemelhar-se entre si. Todavia, dificilmente haverá entre eles uma identidade. Entre eles decerto existirão diferenças tanto de qualidade quanto de quantidade. Para a concretização do princípio, o agente α disporá de mais regras que o agente β; o agente β de mais regras que o agente γ; o agente γ de mais regras que o agente δ. Para regular um determinado âmbito da vida social desde o princípio, o agente α preferirá a regra x1; o agente β, a regra y1; o agente γ, a regra z1; o agente δ, a regra t1. Logo, esses agentes apenas podem ser políticos, não técnicos; eleitos, não concursados; legisladores, não juízes; debatedores, não burocratas; sobresuntores, não subsuntores. Para definirem juntos a quantidade e a qualidade das regras jurídicas que definitivamente concretizarão o princípio de direito, eles não dispõem de uma fórmula simples predefinida ou de um algoritmo. Deverão filiar-se a um partido político, disputar eleições, eleger-se como representantes do povo, investir-se no cargo parlamentar, reunir-se para uma discussão democrática sobre as suas respectivas preferências e selecioná-las por votação em assembleia, externando em nome do povo o que o povo presumivelmente deseja para si mesmo. Em suma, deverão instituir pela via legislativa o estatuto das regras legais expressas – as demonormas – que densificam o princípio (para uma diferenciação entre demonorma e criptonorma. v. nosso Princípio não é norma – 2ª parte. <https://cutt.ly/FOYRXbr>).

Tome-se o exemplo do princípio expresso da vedação de submissão dos animais à crueldade [CF/1988, art. 225, § 1º, VII] (obs.: fala-se em princípio expresso, mas não em princípio «constitucional», pois princípios não integram o ordenamento jurídico e, por isso, não se podem adjetivar em função dos escalões hierárquicos da estrutura piramidal – cf. nosso Princípio não é norma – 5ª parte. <https://cutt.ly/WE2umpL>). Pode o princípio da proibição de crueldade contra animais concretizar-se de diferentes maneiras. É possível imaginar, v. g.: a) no âmbito administrativo, uma regra que obrigue o uso de métodos científicos de insensibilização no abate de animais destinados a consumo em matadouros, abatedouros e frigoríficos, sob pena de sanções como multa simples, multa diária, perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais, perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento de estabelecimentos oficiais de crédito, suspensão temporária ou definitiva das atividades; b) ainda no âmbito administrativo, uma regra que institua o selo «amigos dos animais» como forma de certificação oficial aos estabelecimentos públicos ou particulares que promovam o bem-estar animal, podendo ser suspenso em caso de interrupção das práticas de responsabilidade social animal ou qualquer outra situação que ocasione violação aos direitos dos animais; c) no âmbito penal, uma regra que incrimine a prática de atos de abuso, maus tratos, ferimento ou mutilação de animais, impondo sanções como penas privativas de liberdade (reclusão ou detenção), penas restritivas de direito (prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, suspensão parcial ou total de atividades, prestação pecuniária, recolhimento domiciliar etc.) e/ou multa; d) no âmbito civil, uma regra que confira aos animais personalidade de direito civil [«sujeitos de direito»], ou que se limite a lhes conferir natureza jurídica sui generis, colocando-os em uma zona intercalar entre as pessoas e os bens móveis; e) ainda no âmbito civil, uma regra que prescreva a suspensão ou a perda da guarda em casos de abandono, abuso, maus tratos, ferimento, mutilação etc., com encaminhamento eventual do animal a família substituta; f) no âmbito processual, uma regra que atribua aos animais personalidade de direito processual [«capacidade de ser parte»], podendo nas demandas sobre maus tratos ser representados em juízo por algum custos animalis (Ministério Público, Defensoria Pública, associações de proteção dos animais, guardião do animal etc.); g) no âmbito tributário, uma regra de cunho extrafiscal que incentive empresas a fazerem doações em dinheiro a sociedades protetoras de animais e, assim, a poderem deduzi-las no todo ou em parte do montante do imposto devido; h) no âmbito agrário, uma regra que proíba ou restrinja a exportação e/ou a importação de animais vivos como commodities, impedindo que sejam embarcados e amontoados em condições de fome, sede, desnutrição, medo, estresse, desconforto físico e térmico, dor, lesões, doenças etc.; i) no âmbito trabalhista, uma regra que confira ao animal de trabalho personalidade de direito do trabalho, tornando-o titular do direito a um tempo limitado de trabalho, a uma intensidade limitada de trabalho, a uma alimentação adequada em intervalos regulares, a descansos semanais etc.

É importante frisar que a elaboração do estatuto das regras jurídicas, que concretizam um princípio de direito, se opera em dois planos. No plano vertical-qualitativo, o legislador possui uma ampla margem para configurar cada uma dessas regras jurídicas, escolhendo-lhe os elementos tanto da hipótese de incidência [it.: fattispeciesituazione-tipo ipotizzata; al.: Tatbestand; fr.: énoncé des faits] quanto da consequência jurídica [it.: statuzioneconseguenza giuridica; al.: Rechtsfolge; fr.: conséquence juridique]. Entretanto, posto que ampla, essa margem de configuração está longe de ser absoluta. Em primeiro lugar, a esquematização legislativa de toda e qualquer regra jurídica obedece a imperativos inafastáveis de oportunidade, conveniência e praticabilidade. Em segundo lugar, a regra jurídica esquematizada deve passar pelo crivo interno de um juízo parlamentar preventivo de constitucionalidade. Em terceiro lugar, o conteúdo da regra jurídica decorre de uma combinação de três ordens de elementos, cada uma delas ocupando um nível distinto de abstração: i) accidentalia regulæ [= os elementos acidentais, que particularizam uma certa regra de concretização, diferenciando-a de todas as demais regras jurídicas e fazendo com que ela seja única]; ii) naturalia regulæ [= os elementos naturais, que definem a natureza ou o caráter da regra de concretização e, portanto, o ramo do direito material ao qual ela pertence]; iii) essentialia regulæ [= o elemento essencial, o princípio de direito, o «estado ideal de coisas», que está ocultado nas regras jurídicas, para o qual elas servem como meios de concretização e em razão do qual elas são criadas].

Os três níveis de abstração ficam claros quando são comparadas entre si, por exemplo, 1) a regra jurídico-administrativa sobre interdição de matadouro cruel, 2) a regra jurídico-administrativa sobre o selo «amigo dos animais», 3) a regra jurídico-penal sobre crime de maus tratos contra animais, 4) a regra jurídico-civil sobre personalidade animal não humana, 5) a regra jurídico-processual sobre a capacidade do animal de ser parte e 6) a regra jurídico-agrária sobre proibição de exportação de animais vivos: no nível mais raso, cada uma dessas seis regras jurídicas tem singularidades, características que lhe são exclusivas, elementos acidentais que a individualiza, destacando-a de todas as demais regras do ordenamento jurídico; no nível médio, verifica-se que somente as regras jurídicas (1) e (2) têm os mesmos elementos naturais, a mesma natureza, o mesmo caráter, que as destaca como regras de direito administrativo e, por conseguinte, as diferencia das regras jurídicas penal, civil, processual e agrária; no nível mais elevado de abstração, porém, nota-se que essas seis regras jurídicas têm o mesmo elemento essencial, que faz com que sirvam igualmente para o alcance do mesmo objetivo e a consecução da mesma finalidade, que é a erradicação do lamentável estado disseminado de crueldade contra os animais não humanos. A propósito, a indução amplificadora é justamente isto: o reconhecimento, o isolamento e a descrição detalhada do mesmo elemento essencial presente em um conjunto finito de regras jurídicas, as quais servem à realização finalística de um mesmo «estado ideal de coisas» e que, por isso, são atravessadas por um mesmo princípio implícito.

No plano horizontal-quantitativo, pode-se instituir uma, algumas, todas ou simplesmente nenhuma dessas regras de concretização, condenando-se o princípio expresso a uma marginalidade irrealizada (obs.: direito fundamental não é princípio, mas regra – cf. nosso Princípio não é norma – 6ª parte. <https://cutt.ly/aOOjdRL>). O legislador tem a discrição quanto ao momento, ao modo de realizar e ao grau de realização do princípio. Ademais, em não raras vezes, um mesmo conjunto de regras tem de realizar dois ou mais princípios concorrentes, o que torna obrigatória uma acomodação prática entre eles, impedindo que cada um se realize plenamente. Como se não bastasse, eventual inexistência, insuficiência ou ineficiência do estatuto legal não é suporte fático de qualquer regra constitucional que atribua ao juiz o poder de se substituir ao legislador. O Poder Judiciário não tem competência para a otimização paralegislativa de princípios. Não lhe é dado criar regras de concretização faltantes, nem modificar regras de concretização inoperantes.

Daí o cuidado que se deve ter com a concepção alexyana de princípios como «mandados de otimização» [Optimierungsgebote]. Dizer que princípio é «mandado de otimização» é dizer nada. É impossível que um princípio prescreva que a sua própria realização seja dada na maior medida possível. Não existe norma autorreferente, senão norma referente e norma referida. Em verdade, o princípio é apenas um enunciado categórico sem normatividade jurídica [«A deve ser»], que estabelece um «estado ideal de coisas» a ser alcançado. Assim, para se potencializar esse estado, seria preciso instituir-se um dever de otimização fora do próprio princípio a ser otimizado. Seria preciso instituir-se uma regra e, portanto, um enunciado hipotético-condicional [«Se B, então C deve ser»], que prescrevesse ao juiz o dever de otimizar um princípio sempre que tenha o ensejo de realizá-lo. Em síntese, seria preciso uma regra de otimização, que não se confunde com os princípios a serem otimizados. Sem embargo, não vige no sistema de direito positivo brasileiro vigente qualquer regra desse tipo. Tampouco vige regra que impute ao juiz o poder-dever de corrigir os rumos do ordenamento jurídico [= conjunto sistemático de regras] com o intuito de maximizar a realização da principiologia [= coletânea assistemática de princípios]. Na realidade, a ideia de princípio como «mandado de otimização» esconde três regras inconfessas cujas vigências são indemonstráveis: 1) uma regra de conduta [= o legislador deve editar regras que concretizem o princípio na maior medida possível]; 2) uma regra de qualificação [= comete ilícito o legislador que não edita regras para concretizar o princípio ou cujas regras não concretizam o princípio na maior medida possível]; 3) uma regra de sanção [= compete ao juiz editar as regras de concretização faltantes ou reformular as regras legais que não concretizem o princípio na maior medida possível]. Como se vê, a ideia é combustível para o ativismo judicial. Só o legislador tem legitimidade democrática para definir a quantidade de regras necessárias para se concretizar um princípio e os elementos constituintes de cada uma dessas regras. Contudo, a teoria dos princípios busca suplantar o déficit democrático do juiz, permitindo-lhe legislar [rectius: jurislar]. Nesse sentido, a teoria funciona também como uma técnica: more precisely, como um ardil.

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