Dr. Eduardo José da Fonseca Costa

PRINCÍPIO NÃO É NORMA (21ª PARTE)

O objetivo fundamental desta série de artigos foi descartar a natureza normativa dos princípios e, em consequência, mostrar a impossibilidade de eles serem aplicados per saltum aos casos práticos. Na realidade, quando o juiz «aplica» um princípio, aplica uma regra que ele próprio inventou, julgando-a a mais adequada para concretizar in casu o princípio, nada obstante essa regra se oculte nas entrelinhas da fundamentação decisória (razão pela qual a chamei de criptorregra ou criptonorma).

Ao Querido Irmão

Leandro Macedo dos Santos Teixeira

 

 

I

O objetivo fundamental desta série de artigos foi descartar a natureza normativa dos princípios e, em consequência, mostrar a impossibilidade de eles serem aplicados per saltum aos casos práticos. Na realidade, quando o juiz «aplica» um princípio, aplica uma regra que ele próprio inventou, julgando-a a mais adequada para concretizar in casu o princípio, nada obstante essa regra se oculte nas entrelinhas da fundamentação decisória (razão pela qual a chamei de criptorregra ou criptonorma). Não existe uma marcha metodológica unívoca, que conduza o juiz do princípio de direito a uma única e mesma regra jurídica para o caso. Tudo não passa de uma mera escolha discricionária paralegislativa. Nesse sentido, pretendi mostrar que por trás da teoria normativista dos princípios está a intenção político-ideológica de libertar os juízes das amarras das regras expressas editadas pelo Poder Legislativo e permitir que eles criem as suas próprias regras para resolverem os casos práticos que lhe são submetidos à apreciação (o que tende a degradar o Estado democrático-parlamentar de direito legislado, instituído no Brasil pela Constituição Federal de 1988, em um «Estado aristocrático-judiciário de direito jurisprudencial»). A afirmação de que «princípio é norma» foi submetida a vários testes de falseabilidade e, uma vez que todos deram resultado negativo, concluí que «princípio não é norma» (mantra que tem servido de título a esta série).

No entanto, afirmar a não normatividade dos princípios é somente o início da solução do problema. É bem verdade que, uma vez por outra, afirmei que princípio é «normatividade a caminho», «normatividade em potencial», «modo privativo de normatividade». Todavia, tanto em um caso quanto no outro, limitei-me a dizeraquilo que o princípio não é. Quando muito afirmei aquilo que o princípio quase é. Ele não é uma norma, embora esteja perto de ser uma. Sendo assim, só cheguei até o meio do caminho. Sem embargo, faz-se mais esforço teórico despoluindo-se a natureza dos princípios do que a definindo. O pós-positivismo restabeleceu muito mal a relação entre direito e moral; restabelecendo-a, chafurdou os princípios em uma lama grossa de impertinências. Por isso, definir a natureza autêntica e genuína dos princípios não é deveras uma tarefa difícil. Não sem motivo a releguei aos últimos artigos que compõem esta série. Difícil de fato, aquilo de que a sério mais me ocupei, foi limpar a crosta de gordura pós-positivista. A introjeção forçada dos princípios no âmago do ordenamento jurídico submeteu o direito a um caos entrópico. Foram perdidas algumas gerações de graduados em direito, com formação dogmática sofrível, que não sabem desenvolver raciocínios analíticos desde regras, senão argumentações retóricas - não raro, flácidas - desde princípios. Dessa maneira, urge o trabalho recuperativo - lento e profundo -de expulsar os princípios do ordenamento jurídico. É imprescindível devolvê-los ao seu habitat natural, que é a «nebulosa» interposta entre o ordenamento jurídico e a moral. Com isso se reavivam o protagonismo das regras, o pensamento dogmático, a dignidade jurídico-metodológica e, dessa forma, a própria autonomia do direito.

 

II

O princípio é in essentia um valor e per accidens umfim. Tem caráter invariavelmente axiológica (do grego ξία = «valor», «dignidade») e contingencialmenteteleológica (do grego τέλος = «finalidade», «objetivo»). Os princípios de moral são apenas valores. Têm pura natureza axiológica. Por outro lado, os princípios de direito são mais do que valores: são valores-fins. Têm natureza dúplice axiológico-teleológica. A partir do momento em que o legislador escolhe alguns princípios de moral para serem outrossim princípios de direito, ao caráter valorativo se acrescenta um caráter finalístico. Afinal, os princípios de direito são princípios de moral que o legislador selecionou como orientação, influência, sugestão ou recomendação objetiva para a sua própria atividade jurislativa, bem como para a atividade interpretativa-integrativa dos juízes e administradores públicos. Quando edita regras jurídicas, o legislador tem discrição absoluta quanto ao momento, ao modo e ao grau de realização dos princípios de direito que as inspiram, sem que o juiz e o administrador público possam intrometer-se no percurso dessa realização; entretanto, sobre o ordenamento jurídico recai uma pressão moral permanente para que essa realização seja otimizada, donde se conclui caber aos aplicadores sempre interpretar as regras jurídicas à luz dos princípios de direito que elas visam concretizar e partir deles para porventura colmatar as lacunas do sistema mediante a criação de regras de preenchimento. É a chamada força nomopneica, que estabelece para o Estado-legislação, o Estado-jurisdição e o Estado-administração o propósito moral não coercitivo de potenciar a principiologia jurídica tanto quanto lhes seja possível (para um aprofundamento sobre a noção de nomopneia, v. nosso Princípio não é norma - 14ª parte. <https://cutt.ly/M0ZktDs>).

Daí se percebe que os princípios de direito possuem um caráter teleológico, mas não um caráter teleonômico: o «estado ideal de coisas» estabelecido no princípio de direito é uma inspiratio, não uma obligatio. Trata-se de um «peso insinuativo», uma «influência simpática», uma «carga sugestiva», uma «força branda», um «fardo recomendatório», uma «hipotonia», uma «constrição moral» ao redor do ordenamento jurídico. Não existe um dever jurídico-formal de otimização dos princípios de direito à outrance, mas um «propósito intencional consciente» de se promover essa otimização de acordo com critérios pouco rigorosos de «conveniência», «oportunidade», «praticabilidade», «transigência» etc. Em termos aristotélicos, a enteléquia [ντελέχεια] - ou seja, a realização plena, completa, pronta e acabada da «normatividade em potência» [= princípios de direito] em «normatividade em ato» [= regras jurídicas] - não é um poder-dever funcional do Poder Legislativo (o que impede, por exemplo, o Poder Judiciário de atuar em substituição).  Em suma, não vigem: a) regra constitucional que impute ao Poder Legislativo o dever de otimizar princípios de direito; b) regra constitucional que, em caso de omissão legislativa, impute ao Poder Judiciário o poder de supri-la. Logo, o conjunto dos princípios jurídicos consiste em soft law [= dimensão não normativa do direito], não em hard law [= dimensão normativa do direito].

 

III

Dessa maneira, a promoção do «estado ideal de coisas», que o princípio de direito almeja, não é impositiva nem constante. Entendimento contrário provocaria a degradação contra constitutionem do Estado nomocráticoliberal (que, em geral, se assenta sobre uma democracia parlamentar) em um subversivo «Estado telocráticoantiliberal» (que, em não raras vezes, descamba para uma aristocracia judiciária bastante autoritária, tal como se tem hoje no Brasil).

Em primeiro lugar, o princípio de direito pode ser concretizado por conjuntos de regras jurídicas diferentes entre si, todos eles válidos; nesse caso, compete ao legislador escolher um conjunto normativo em detrimento dos outros. Em segundo lugar, é possível que a concretização plena e completa do princípio de direito seja inexequível em um determinado momento; nesse caso, compete ao legislador aguardar sine die um instante mais oportuno para a concretização total, ou promover a concretização parcial viável naquele exato momento. Em terceiro lugar, é possível que a concretização total seja impraticável; nesse caso, resta ao legislador abandonar o projeto de concretização total, satisfazendo-se, de uma vez para sempre, com uma mera concretização parcial. Em quarto lugar, é possível que inexistam condições para uma concretização simultânea de todos os princípios de direito; nesse caso, compete ao legislador eleger os princípios que serão concretizados no todo, os princípios que serãoconcretizados em parte e os princípios que não serão por enquanto concretizados. Em quinto lugar, é possível que sobrevenha um obstáculo que retroceda o trabalho de concretização do princípio de direito; nesse caso, compete ao legislador resignar-se com a inexequibilidade total ou parcial superveniente, ou proceder a uma «correção de rota», editando novas regras jurídicas que em alguma medida tendam a concretizar o princípio por vias estratégicas alternativas. Em sexto lugar, é possível que se consiga concretizar o princípio de direito unicamente por intermédio de ciclos ou etapas de implementação; nesse caso, compete ao legislador editar o grupo normativo subsequente só após a efetivação plena e completa do grupo normativo antecedente. Em sétimo lugar, é possível que, conquanto existam condições para a concretização do princípio de direito, o legislador não a queira; nesse caso, nada se há de fazer, senão respeitar-se essa inação deliberada, que também caracteriza um exercício regular de competência discricionária típica do Poder Legislativo e, portanto, configura um ato omissivo lícito constitucional (o que não implica atirar o princípio de direito ao mar do esquecimento, pois, sem embargo, ele pode ser invocado tanto pelo juiz quanto pelo administrador público para a interpretação-aplicação de regras jurídicas, bem como para o preenchimento de lacunas do ordenamento jurídico estatal).

Tudo isso significa que: a) em relação a si mesmos, os princípios de direito formam um agrupamento de valores [= constelação]; b) em relação às regras jurídicas que tendem a concretizá-los, os princípios de direito formam um agrupamento de fins, metas ou objetivos lassos [= plano, planejamento, programa]. Por esse ângulo, pode-se asseverar que a principiologia jurídica [corpus principiorum iuris] é uma constelação-programa não compulsória.

 

IV

Em contrapartida, os princípios de moral nascem da interação social espontânea e nem sempre contam com uma adesão social uniforme, intensa e persistente. Para que um princípio moral seja realizado por meio de uma regra casuística de julgamento moral, é preciso que em seu foro íntimo o indivíduo que esteja julgando tenha antes aderido com convicção a esse princípio. Como se nota, o índice de adesão moral é descontínuo: no plano horizontal, ele varia em função do número de indivíduos aderentes ao princípio; no plano vertical, em função do grau e do tempo de comprometimento do indivíduo com o princípio aderido. Lembre-se que, no direito, a adesão ao princípio moral, que faz dele um princípio jurídico, é heterônoma, pública, legislativa, oficial, objetiva, concentrada, homogênea; em contraposição, na moral, a adesão ao princípio moral é autônoma, privada, individual, inoficial, subjetiva, dispersa, heterogênea. Nesse sentido, o princípio moral não é uma meta, um ideal, um objetivo, uma finalidade objetiva a ser atingida por todos indivíduos em seus respectivos julgamentos morais. Quando muito o princípio moral pode ser um valor-fim aos indivíduos que aderiram a ele. Assim sendo, existe uma equivalência perfeita entre as expressões «princípio moral» e «valor moral»; contudo, não existe uma perfeita equivalência entre as expressões «princípio jurídico» e «valor jurídico». Em vista disso, o termo valor deve ser reservado à moral. O léxico da língua portuguesa não oferece qualquer palavra simples para substituir a palavra composta valor-fim; portanto, é preferível que no direito se fale unicamente em princípio, jamais em valor. Na moral, podem-se empregar tanto a expressão princípio moral quanto a expressão valor moral; no direito, convém empregar-se somente a expressão princípio jurídico.

Uma coisa é certa: nem o princípio moral nem o princípio jurídico têm normatividade. Princípio é sempre um imperativo categórico [«A deve ser»] e, por conseguinte, um «dever-ser ideal». Daí por que não tem consistência normativa e, por isso, não pode ser aplicadoper saltum aos casos práticos. Apenas a regra tem normatividade. Apenas a regra tem natureza nomológica (do grego νόμος = «norma», «lei»). Apenas a regra é aplicável aos casos práticos. Norma é sempre um imperativo hipotético-condicional [«Se B é, então C deve ser»] e, por conseguinte, um «dever-seratual». Em síntese, norma = regra. Ao fim e ao cabo, o princípio de direito é isto: um valor moral, que o legislador adota de forma implícita ou explícita com o propósito não compulsório de inspirar as atividades de criação e aplicação do direito, impedindo que o direito se divorcie completamente dos conteúdos éticos vigentes. Nessa perspectiva, a constelação dos princípios jurídicos é uma garantia jellinekiana de «mínimo ético». Há aí, porém, um dilema. Se se torna um «máximo ético», o direito deixa de existir por diluição completa na moral; se se torna um «nada ético», deixa de existir por incapacidade absoluta de despertar obediência. Destarte,deve haver um quantum ótimo, seletivo, fragmentário e assistemático de princípios jurídicos. Porque nisto lhes reside a alta dignidade: ser uma interface placentária na relação equilibrada entre direito e moral, permitindo que a moral nutra o direito sem o capturar.

Compartilhe:

Compartilhar no Facebook Compartilhar no Linkedin Compartilhar no Whatsapp

Redes Sociais

Lattes

Todos os direitos reservados.