PRINCÍPIO NÃO É NORMA – 3ª PARTE
Como já dito, redito e tresdito nos artigos anteriores, os princípios jurídicos não têm normatividade; logo, não são aplicáveis diretamente aos casos concretos (https://cutt.ly/nnkO1l7; https://cutt.ly/Wm0uG5s). Na realidade, o juiz aplica a regra artesanal que ele próprio criou para concretizar o princípio. De ordinário, essa regra está subentendida na fundamentação da decisão judicial.
Como já dito, redito e tresdito nos artigos anteriores, os princípios jurídicos não têm normatividade; logo, não são aplicáveis diretamente aos casos concretos (https://cutt.ly/nnkO1l7; https://cutt.ly/Wm0uG5s). Na realidade, o juiz aplica a regra artesanal que ele próprio criou para concretizar o princípio. De ordinário, essa regra está subentendida na fundamentação da decisão judicial. Trata-se de uma criptorregra jurídica. Portanto, na «aplicação per saltum» de um princípio, a intermediação entre a principiologia e a casuística não é feita por uma regra legal expressa [interpositio legislatoris], mas por uma regra judicial implícita [interpositio iudicis]. Todavia, não existe um método único, unívoco e certeiro de concretização ou densificação de princípios. Diante de um determinado caso prático, um princípio pode concretizar-se em múltiplas regras, todas elas igualmente optáveis entre si. Isso significa que o juiz simplesmente escolhe uma delas dentro de um senso pessoal incontrolável. Isso significa, em síntese, que a criação judicial da criptorregra é marcada por discricionariedade. A «aplicação per saltum» de princípios é uma atividade essencialmente discricionária. Dessa forma, o juiz se torna um autêntico microlegislador, posto que indômito e desparametrizado. A consequência imediata dessa atividade judicial paralegislativa é a implosão dramática da segurança jurídica. Afinal de contas, no momento da resolução de casos similares por um mesmo princípio, cada juiz concretizará esse princípio ao seu modo. Tantos os juízes, tantas as criptorregras; tantas as criptorregras, tantas as soluções. Por conseguinte, surge a necessidade pública de se «arbitrar» qual a «melhor» criptorregra concretizadora e de se impor coercitivamente essa «arbitragem» à observância de todos. Em outras palavras, surge a indispensabilidade institucional das cortes supremas e dos seus precedentes obrigatórios. Ao fim e ao cabo, a esses tribunais compete isto: fazer a macroescolha discricionária, soberana e definitiva da criptorregra mais conveniente, oportuna e praticável para a concretização de determinado princípio.
Como se vê, a teoria dos precedentes obrigatórios é um desdobramento prático inevitável da teoria normativa dos princípios. Longe de ser uma solução «contra» o ativismo judicial, com efeito é uma solução para o ativismo judicial, em benefício do ativismo judicial, porquanto o coloca em níveis mais «aceitáveis», contribuindo para a sua permanência. Ressalte-se: os precedentes obrigatórios não visam propriamente aumentar a segurança jurídica, mas impedir que ela rua por completo. São menos um combustível do que um remédio. Desse jeito, a relação entre juízo a quo e juízo ad quem passa por inovações. Além de controlarem o error in iudicando e o error in procedendo [= atividade técnico-burocrática], os recursos passam a controlar outrossim o error in creando [= atividade político-deliberativa]. Tem-se uma instância judiciária paralegislativa superior revisando as criações criptonormativas de uma instância judiciária paralegislativa inferior. Nesse caso, o provimento do recurso não implica exatamente reforma nem nulificação da decisão recorrida, mas «sobrecriação», «sobreconstituição», «sobreprodução», «sobrefazimento». Tudo isso faz com que se instaure uma cadeia sucessiva de problemas: a «aplicação per saltum» de princípios gera insegurança jurídica, que somente se resolve mediante a «precedentalização» do direito e, portanto, mediante a instituição de cortes supremas; no entanto, a composição das cortes supremas não se faz por meio de eleição popular, mas por meio de nomeação política. Nesse sentido, os casos práticos não se resolvem apenas por regras criadas por agentes escolhidos pelo povo. Eles se resolvem – também e principalmente – por regras criadas por agentes escolhidos pelo Presidente da República. A democracia parlamentar vai sendo capturada paulatinamente por uma aristocracia togada. O protagonismo de Deputados Federais e Senados da República vai dando lugar ao protagonismo dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça e, sobretudo, do Supremo Tribunal Federal. O Estado democrático-parlamentar vai desnaturando-se ipso facto num Estado aristocrático-tribunalício. O direito legislado vai sendo substituído por um direito jurisprudencial. A omnilateralidade objetiva da lei vai cedendo passo à unilateralidade subjetiva do juiz.
II
A institucionalização da teoria normativa dos princípios pelo Estado aristocrático-tribunalício de direito jurisprudencial transfere o eixo de positivação jurídica da lei para a jurisprudência. Isso provoca um enorme impacto estrutural na ciência dogmática do direito. Em primeiro lugar, o ponto de partida textual para a construção do edifício sistemático-conceitual se tornam os julgados dos tribunais superiores. Troca-se, portanto, o objeto sobre o qual os cientistas do direito se debruçam. A dificuldades impostas pela indeterminação semântica do texto legal dão lugar às dificuldades impostas pela indeterminação semântica do texto jurisprudencial. Ilude-se, assim, quem veja aqui mais precisão que ali. A linguagem dos magistrados não é menos problemática que a linguagem dos congressistas. Afinal, a linguagem é justamente a mesma. As incertezas do direito não se radicam exclusivamente na eventual inabilidade comunicativa do editor do texto normativo, mas também no texto normativo per se, que é uma manifestação da linguagem e, dessarte, uma fonte invencível de ambiguidades, vaguezas, polissemias etc. A jurisprudência não se expressa numa superlinguagem fantástica, idealmente clara, indubitável, inequívoca, objetiva, sem duplos sentidos, em que cada palavra designa ou aponta apenas uma coisa, correspondendo a uma só ideia ou conceito. Por isso, interpretar votos de acórdão é tão ou mais complexo do que interpretar dispositivos de lei. De qualquer maneira, o trabalho científico dedicado ao texto jurisprudencial tem a mesma dogmaticidade do trabalho científico dedicado ao texto legal. A modificação do objeto não importa necessariamente na modificação do método. Enfim, persiste a natureza dogmática e, portanto, contraproblematizante da ciência jurídica stricto sensu, conquanto desenvolvida sob um corrompido Estado democrático-parlamentar de direito legislado.
Em segundo lugar, a qualidade do trabalho doutrinário sofre queda vertiginosa. Isso porque os juristas nacionais não dominam bem a analítica jurisprudencial e, por isso, não sabem garimpar a criptorregra. Como já disse alhures, um modelo de precedentes não vinga no País dado que nos falta a habituação histórico-prática de «um saber-querer-poder identificar precedentes, um saber-poder-querer construí-los, um saber-querer-poder aceitá-los, um saber-querer-poder submeter-se a eles, um saber-querer-poder superá-los, um saber-querer-poder lidar com os seus componentes, um saber-querer-poder interpretá-los, um saber-querer-poder aplicá-los» (Os tribunais superiores são órgãos transcendentais?. <https://cutt.ly/dm4uRcX>). No Estado aristocrático-tribunalício de direito jurisprudencial, a ratio decidendi ou holding de um precedente nada mais é do que a regra jurídica (a «criptorregra») que a corte suprema escolheu implicitamente como a mais conveniente, oportuna e praticável para densificar um determinado princípio em relação a uma determinada situação-tipo. Mas nem sempre é fácil identificar essa regra, pois se trata de normatividade oculta. Quando muito ela está subentendida na fundamentação do acórdão. Quase sempre está perdida nos limites confusos entre a textualidade da ratio decidendi e a textualidade dos obiter dicta. À vista disso, inapta a separar o joio do trigo, a doutrina brasileira se limita a abordar os julgados dos tribunais superiores mediante um exegetismo improvisado de baixa consistência metodológica. Limita-se, em geral, a comentários parafrásticos sobre os votos desses acórdãos. Nem de longe vêm à tona as partes constituintes da criptorregra. Ficam intocados os elementos que lhe compõem tanto a hipótese de incidência [it.: fattispecie, situazione-tipo ipotizzata; al.: Tatbestand] quanto a consequência jurídica [it.: statuzione, conseguenza giuridica; al.: Rechtsfolge]. Tudo se circunscreve a uma narração esportiva, inofensiva e enfadonha do bolo retórico-argumentativo utilizado pelo tribunal para «aplicar per saltum» o princípio em jogo. Em suma, trata-se de um trabalho epidérmico e preguiçoso. Não se aprofunda nas camadas mais interiores do discurso jurisprudencial e, por isso, não radiografa as proposições lógico-deônticas que lhe subjazem. De certo modo, o Estado aristocrático-tribunalício de direito jurisprudencial faz nascer o reino da superficialidade doutrinária.
III
Um helpful example de criptonormatividade é a concretização jurisprudencial do princípio da insignificância penal (também conhecido como «princípio da bagatela» ou «preceito bagatelar»). De acordo com o princípio mencionado, não se deve punir conduta da qual resulte ofensa insignificante ao bem jurídico penalmente tutelado [minimis non curat pretor]. Contudo, não se trata de um princípio explícito do sistema penal positivo nacional vigente atual. Tampouco é um princípio implícito, ao qual se possa chegar por indução amplificadora desde regras legais expressas do sistema. Durante o trabalho de redação do tipo penal, o legislador brasileiro sempre dispõe de meios para evitar que se alcancem os casos leves; porém, jamais pré-exclui a tipicidade, preferindo abrandar ocasionalmente a pena. É o caso do furto «mínimo» ou «privilegiado» (CP, art. 155 § 2º: «Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa»). Ainda assim, a doutrina penal mainstream defende: a) a vigência do princípio da insignificância penal; b) a normatividade do princípio da insignificância penal; c) a «aplicabilidade direta» do princípio da insignificância penal aos casos concretos [= a possibilidade de o juiz inventar a criptorregra de intermediação entre o princípio da insignificância penal e os casos criminais]. Como não poderia deixar de ser, cada juiz penal inventa uma criptorregra ao seu gosto. Cada juiz penal se socorre do seu senso pessoal de proporção e justiça para definir os critérios de pré-exclusão do crime. Cada juiz penal aquilata ao seu modo o grau de insignificância lesiva ao bem jurídico tutelado. Dessa forma, está-se diante de um exercício heterotópico de política em geral e de política criminal em particular, que se deveriam fazer nas assembleias parlamentares, não nos gabinetes judiciais. Ora, essa discricionariedade paralegislativa parajurisdicional tende a provocar uma explosão de controvérsia jurisprudencial. Tome-se o exemplo do crime de descaminho [CP, art. 334]. Não consta do Código Penal qualquer regra descriminante em razão do pequeno valor das mercadorias importadas. Enfim, não se prevê algo que se aproxime de um «descaminho mínimo» ou «privilegiado».
Sem embargo e sem timidez, os tribunais brasileiros «aplicam» o princípio da insignificância penal ao crime de descaminho. «Aplicando diretamente» o princípio, entretanto, acabam por produzir uma jurisprudência babelina. Quanto ao elemento objetivo da hipótese de incidência da criptorregra, grosso modo são cinco as «correntes jurisprudenciais de entendimento»: i) o valor das mercadorias importadas não pode ultrapassar o limite de isenção do imposto de importação; ii) o valor das mercadorias importadas pode ultrapassar discretamente esse limite de isenção; iii) o valor das mercadorias importadas não pode ultrapassar o limite fixado no artigo 20 da Lei 10.522/2002 para o arquivamento de autos de execução fiscal; iv) o valor das mercadorias importadas pode ultrapassar discretamente o limite fixado no artigo 20 da Lei 10.522/2002; v) é desimportante qualquer limite numérico, cabendo ao juiz aferir a baixa lesividade em cada caso segundo o seu «prudente arbítrio». Por sua vez, quanto ao elemento subjetivo da hipótese de incidência da criptorregra, grosso modo as «correntes jurisprudenciais de entendimento» são duas: i) são irrelevantes os aspectos pessoais do agente (habitualidade delitiva; reincidência; existência de processos criminais, inquéritos policiais ou procedimentos administrativos fiscais em curso; etc.); ii) são relevantes os aspectos pessoais do agente. Em consequência, de um modo geral, existem pelo menos dez possibilidades combinatórias de criptorregra, todas elas igualmente optáveis entre si. Qualquer uma delas poderia servir como uma proposta demonômica de lege ferenda. É interessante perceber que a práxis jurisprudencial da insignificância penal, embora configure uma usurpação judicial de função legislativa, é tida como um ativismo judicial «do bem», «simpático», «tolerável», «agradável», «esclarecido». Afinal de contas, os resultados aprazem o establishment acadêmico neoiluminista, que rende culto à condescendência, flerta com o abolicionismo penal e demoniza as políticas de tolerância zero com crimes de menor potencial ofensivo, reputando-as por «reacionárias», «conservadoras», «fascistas».
IV
A densificação de princípios por criptorregras modifica o modo como o direito objetivo, o ordenamento jurídico e o direito positivo se inter-relacionam. Direito objetivo é o direito como realidade externa, que antecede e independe do intérprete-aplicador. Ordenamento jurídico é o sistema das normas, que se aplicam aos casos. Direito positivo é o direito posto por uma autoridade. Na democracia parlamentar, o direito é positivado pelo legislador. A lei é a fonte primacial de positivação jurídica. A partir dela, a doutrina realiza o trabalho analítico de separar os princípios das regras, de entrever princípios implícitos, de juntá-los com os princípios explícitos e de organizar as regras num sistema. De um lado, põe-se o conjunto não sistemático dos princípios (a principiologia); de outro, o conjunto sistemático das regras (o ordenamento jurídico). Todavia, só as regras são normas. Só elas se aplicam. Os princípios se cingem a fechar o sistema de regras e auxiliar na interpretação delas. Nesse sentido: a) direito positivo = conjunto de regras e princípios expressos em textos de direito positivo; b) direito objetivo = sistema de regras + conjunto de princípios explícitos e implícitos; c) ordenamento jurídico = sistema de regras. Note-se que o direito positivo, o direito objetivo e o ordenamento jurídico são etapas sucessivas de um ciclo de abstrações empreendido pela doutrina. Na democracia parlamentar, a doutrina tem papel central. Seu esforço constitutivo-interpretativo é axial para identificar as regras aplicáveis. Daí o seu valor operativo. Isso permite que a doutrina teça críticas técnicas à jurisprudência quando os tribunais não aplicam a regra que incidiu. Constrangendo os juízes a uma ocupação técnico-burocrática, a doutrina contribui para a autonomia do direito, blindando-o contra «predadores externos» (moral, religião, política, economia etc.). Enquanto a regra jurídica tem estrutura hipotético-condicional [«Se A é, então B deve ser»], a norma moral tem estrutura categórica [«C deve ser»]; logo, quando a doutrina centra o direito nas regras, divorcia a razão jurídica da razão moral, fazendo-as autônomas entre si.
Em contrapartida, na aristocracia judiciária, o direito é positivado pelos tribunais. A fonte primacial de positivação jurídica é a jurisprudência. Isso porque se entende o ordenamento jurídico como um conjunto de princípios. Eles têm normatividade e a partir deles o juiz tira a solução para os casos. O juiz identifica na lei um princípio explícito ou implícito, concretiza-o mediante uma regra por ele próprio criada e aplica-a. Daí se vê que a lei tem um subvalor pré-positivo. Na verdade, o valor positivo está na regra judicial implícita, que o juiz criou a pretexto de «aplicar» o princípio. Com isso, restam à doutrina dois papéis acessórios: a coleta passiva de criptormas e a sistematização acrítica delas. Nesse sentido: a) ordenamento jurídico = conjunto de princípios; b) direito positivo = conjunto das regras judiciais implícitas; c) direito objetivo = sistema de regras. Nesse caso, o ordenamento jurídico, o direito positivo e o direito objetivo são etapas sucessivas de um ciclo de concretização empreendido pela jurisprudência. Em uma aristocracia judiciária, a doutrina se rebaixa a um papel periférico. As regras aplicáveis passam a depender de um esforço constitutivo-criativo dos tribunais. Ante a incapacidade doutrinária de constranger, os juízes se ocupam de uma atividade político-deliberativa; por isso, a autonomia do direito se esfacela. Se na democracia parlamentar as justificativas extrajurídicas da demonorma se escondem nos anais dos debates legislativos, na aristocracia judiciária elas integram o próprio obiter dictum da fundamentação decisória que positiva a criptonorma. Não sem razão os votos dos Ministros do STJ e, sobretudo, do STF hoje mais parecem exposições de motivos de leis. Tanto o princípio jurídico quanto a regra moral têm estrutura categórica [«C deve ser»]; por conseguinte, centrando o direito nos princípios, a jurisprudência congrega razão jurídica e razão moral. Ora as torna capítulos de uma razão prática mais geral, ora reduz a razão jurídica a uma razão moral especializada. Tudo isso mostra que não se pode transigir minimamente com a teoria normativa dos princípios. Ela é a «vara de condão» do ativismo judicial. Destruindo-a, em boa parte ressurgem a democracia parlamentar, a dignidade da legislação, a autonomia do direito, a auctoritas da doutrina, a serenidade dos juízes…