PROCESSO ESTRUTURAL COMO PARADOXO PRAGMÁTICO
Em tempos em que se faz do irracionalismo divisa, tem havido uma produção seriada de teorias contraditórias.
Ao Dr. Cristiano Bervian,
Nobre Procurador do Estado do Rio Grande do Sul
- Em tempos em que se faz do irracionalismo divisa, tem havido uma produção seriada de teorias contraditórias. O disparate do qual sofrem tem quase sempre um caráter insuspeito. Não se trata de uma contradição sintática, pois não se constata nelas uma incoerência interna entre os seus enunciados. Tampouco se trata de um contrassenso semântico, pois não se verifica qualquer incongruência entre as enunciações e os objetos enunciados. Ora, se essas teorias fossem de incoerência ou incongruência manifestas, decerto não conseguiriam tantos adeptos. Inclusive estudantes inexperientes, após algum treino mental, logram precaver-se contra esses tipos de inconsistência. O absurdo epidêmico que inquina parte considerável das teorizações modernas é, deveras, de natureza performativa. Uma vez aplicadas a si mesmas, elas geram um paradoxo prático e, por isso, se autoinvalidam. Em suma, elas não passam pelo filtro severo de si próprias e, desse modo, se rechaçam quando em funcionamento. Não sem motivo, costumam conceber estratégicas para se blindarem contra testes de autoaplicação, em geral desqualificando ad hominemquem os proponha e fabricando uma nuvem de fumaça espessa ao redor de si.
- Isso é comum em teorias autorreferentes, teorias sem suporte no real e teorias fundadas em premissas mutuamente excludentes. São vários os exemplos: a) o ceticismo epistemológico («não existe a verdade»): se a proposição fosse verdadeira, haveria ao menos uma verdade (a própria afirmação); b) o ceticismo gnosiológico(«nada pode ser conhecido»): se não se pode conhecer nada, não se pode saber se a própria tese é verdadeira; c) o ceticismo comunicacional(«não há comunicação possível»): o simples ato de comunicar já contradiz o conteúdo; d) o relativismo(«tudo é relativo»): se tudo fosse relativo, essa proposição não poderia ter validade absoluta; e) o historicismo («toda teoria é um produto do tempo histórico»): a proposição teria de incluir a teoria historicista mesma; f) o particularismo («nenhum enunciado é universal»): o enunciado pretende ser universal, conquanto negue a possibilidade de universais.
- Um paradoxo semelhante aflige a chamada «doutrina do processo estrutural». De acordo com ela, o Poder Judiciário pode interferir em políticas públicas e instituições para erradicar um «estado inconstitucional de coisas» e, assim, a violação sistemática e generalizada de um direito fundamental, sobretudo quando decisões individuais e concretas não bastam para resolver o problema (ex.: sistema de saúde ineficiente, prisões superlotadas, degradação ambiental). Entretanto, ao normalizar essa interferência, o Poder Judiciário pode dar azo a um outro tipo de violação estrutural: uma erosão sistemática e generalizada da separação de poderes[CF, art. 2º, c. c. art. 60, § 4º, III]. Afinal, juízes e tribunais intrometem-se em escolhas político-discricionárias para as quais não têm legitimidade democrática, senão agentes legislativo-governamentais escolhidos pelo povo em eleições diretas.
- A teoria tenta justificar a quebra da separação de poderes para corrigir um «estado inconstitucional de coisas»; porém, ao fazê-lo amiúde, cria um novo «estado inconstitucional de coisas», que apenas pode ser superado abandonando-se a própria teoria. Dessa forma, o «processo estrutural» é uma concepção performaticamente contraditória, uma vez que o ato de a empregar com regularidade [= intervenção estrutural constante] causa a mesma patologia que se busca eliminar [= um estado inconstitucional]. A doutrina se autonulifica na prática porque a sua aplicação corriqueira e permanente contradiz a sua própria finalidade. O resultado empírico do estruturalismo contraria a sua pretensão normativa. Enfim, caso utilizado sem limites, não como um remédio excepcionalíssimo, o «processo estrutural» se autossuprime, tendo em vista que afronta a Constituição, que ele diz proteger. No limite extremo, seria necessário instaurar um processo estrutural para abolir o próprio processo estrutural ou, ao menos, tornar-lhe o uso raro, extraordinário, inabitual.
- Menoscabar a separação de poderes não é pouca coisa. Não se trata de um «mal menor e necessário». Ela é o mais importante pilar da organização do Estado. Não sem razão está previsto no artigo 2º da Constituição Federal de 1988. Tem uma topologia frontispicial no texto constitucional e, em consequência, uma dimensão fundante do sistema constitucional positivo vigente atual. Essa relevância é tão nobre e distinta que a separação de poderes é qualificada como uma cláusula pétrea pelo artigo 60, § 4º, III, da Constituição. Isso significa que ela determina a identidade da Constituição Federal de 1988, não podendo ser abolida por emenda constitucional. Nesse sentido, uma violação generalizada e sistemática da separação de poderes provoca uma desfiguração da ordem constitucional prescrita e, portanto, a intrusão oblíqua de uma ordem clandestina. O «costume inconstitucional» de desprezo à independência e à harmonia entre os Poderes é, de fato, um jeito brando de revolução jurídica, que estabelece passo a passo uma nova ordem constitucional e, por via reflexa, um novo ordenamento jurídico.
- Poder-se-ia argumentar que: 1) a violação generalizada e sistemática de um direito fundamental também desfigura a ordem constitucional de 1988; 2) violar um direito fundamental é mais grave que violar a separação de poderes; 3) um balanceamento permite a preponderância dos direitos fundamentais sobre a separação de poderes. Ora, a violação corriqueira e permanente de um direito fundamental não altera o modelo de Estado adotado pela Constituição. Ademais, trata-se de violação de um direito fundamental, não do catálogo inteiro de direitos fundamentais. Em contrapartida, a violação corriqueira e permanente da separação de poderes profana um pilar inteiro da organização do Estado, substituindo o governo da lei pela vontade arbitrária de juízes ou governantes. Seja como for, a afronta constante de um direito fundamental não promove uma erosão da separação de poderes, mas a afronta constante à separação de poderes implica um perigo grande de erosão a todos os direitos fundamentais.
- De qualquer forma, não existe primazia dos direitos fundamentais sobre a separação de poderes. Trata-se de regras constitucionais com idêntica hierarquia entre si. Logo, não se pode erradicar uma inconstitucionalidade originando outra. Menosprezar a separação de poderes não deve ser «a» condição para os direitos fundamentais se efetivarem em juízo. Uma das principais differentiæ specificæda Constituição de 1988 é a elevação tanto dos direitos civis quanto da separação de poderes à categoria das cláusulas pétreas[art. 60, § 4º, III e IV]. Nenhuma outra constituição lhes conferiu tamanha envergadura. A maioria das cartas magnas anteriores previram somente a forma republicano-federativa como cláusula pétrea (v. Constituição de 1934, Art. 178, § 5º; Constituição de 1946, Art. 217, § 6º; Constituição de 1967, Art. 50, § 1º; Constituição de 1969, Art. 47, § 1º) (obs.: as Constituições de 1824 e 1937 não tinham cláusulas pétreas; o § 4º do Artigo 90 da Constituição de 1891, além da forma republicano-federativa, previa a igualdade da representação dos Estados no Senado). Logo, afrontar direitos fundamentais é tão grave quanto afrontar a separação dos Poderes. Todos eles integram o «cerne inalterável» da Constituição de 1988 com a mesma magnitude.
- Em um ambiente de respeito à separação de poderes, o rol dos direitos fundamentais, por menor que seja, tende a aumentar por interpretação ampliativa; porém, em um ambiente de desrespeito à separação de poderes, o rol dos direitos fundamentais, por maior que seja, tende a contrair-se por aplicação restritiva ou por inaplicação. A experiência histórica registra que, nos Estados que respeitaram a separação de poderes, houve um clima mais propício à democracia, ainda que as suas respectivas constituições tivessem um inventário discreto de direitos fundamentais (ex.: Estados Unidos); por sua vez, nos Estados que desrespeitaram a separação de poderes, houve um clima mais avesso à democracia, ainda que as suas respectivas constituições tivessem uma tabela prolixa de direitos fundamentais. Tome-se como exemplo a União Soviética: as suas constituições de 1936 (Stálin) e 1977 (Brejnev) continham amplas declarações de direitos (educação, saúde, cultura lazer, trabalho etc.); todavia, o Partido Comunista controlava os três poderes, razão por que os direitos civis e políticos não tinham garantias contra os arbítrios do Estado e ficavam no plano retórico.
- As constituições latino-americanas em regimes autoritários e as constituições africanas pós-independência também apresentaram longas cartas de direitos violados com frequência por força de Executivos hipertrofiados, Legislativos omissos e Judiciários sem independência. Daí se vê que uma condição indispensável para a efetividade dos direitos fundamentais é respeitar a separação de poderes, não a desprezar. Aliás, a Constituição de 1824 já reconhecia isso: «A Divisão, e harmonia dos Poderes Politicos é o principio conservador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer effectivas as garantias, que a Constituição offerece» [Art. 9]. Ante o exposto, é possível sintetizar tudo isso no seguinte esquema: pouco direitos fundamentais escritos + separação de poderes forte = direitos respeitados e expandidos pelas praxes jurisdicional e legislativa; em contraposição, muitos direitos fundamentais escritos + separação de poderes inexistente ou fraca = direitos não respeitados [= constitucionalismo simbólico]. Nota-se, dessa maneira, que a separação de poderes é mais decisiva para a efetividade de direitos fundamentais do que a quantidade de direitos listados na Constituição. Como bem dizia ANTONIN SCALIA, «every banana republic in the world has a bill of rights» (<https://www.govinfo.gov/content/pkg/CDOC-114sdoc12/pdf/CDOC-114sdoc12.pdf>).
- Pelo visto, o estruturalismo enxerga entre a separação de poderes e os direitos fundamentais uma relação de proporção inversa: quando o grau de efetividade da separação de poderes aumenta, o grau de efetividade dos direitos fundamentais diminui, e vice-versa. Destarte, o produto desses dois graus de efetividade seria sempre uma constante. Daí por que, para a proteção estrutural de um direito fundamental em juízo, seria imprescindível a degradação estrutural da separação de poderes na mesma proporção. Como não poderia deixar de ser, esse tipo de ponderação tem por trás de si a ideia equivocada de que tanto a separação de poderes como os direitos fundamentais seriam «princípios». Haveria os «princípios de direito fundamental» e o «princípio da separação de poderes». Todos eles seriam «estados ideais de coisas», que se entrechocam no plano fenomênico e que, por conseguinte, precisam do juiz para promover entre eles uma acomodação prática nas diferentes situações da vida quotidiana. Sem embargo, é óbvio que tanto a separação dos Poderes quanto os direitos fundamentais são regras, cada qual com a sua hipótese de incidência, a sua consequência jurídica e o seu âmbito específico de aplicação, sem que se possa falar em qualquer «antinomia» entre eles.
- Embora a Constituição de 1988 haja instituído uma tripartição montesquiana de funções, típica de um Estado nomocrático, ao que parece os estruturalistas partem de uma tripartição lowensteiniana de funções, típica de um Estado telocrático. Como cediço, KARL LOWENSTEIN trissecava o poder político nas funções de «determinação política» [policy determination], de «execução política» [policy execution] e de «controle político» [policy control] (Political power and the governmental process. 2. ed. University of Chicago Press. 1965, p. 34). Essa divisão provavelmente inspirou FABIO KONDER COMPARATO, que redigiu por solicitação do PT um anteprojeto de Constituição para Brasil (Muda Brasil – uma constituição para o desenvolvimento democrático. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987). Nele, quatro são as funções do Estado: 1) elaborar planos de desenvolvimento e fiscalizar a sua execução [Conselho Nacional de Planejamento e Superintendente Nacional de Planejamento]; 2) aprovar os planos [Congresso Nacional]; 3) executar os planos [Poder Executivo]; 4) julgar a invalidade de leis e atos do Poder Executivo que contrariem os planos [Tribunal Constitucional]. Nesse arranjo, o controle judicial de políticas públicas é compreensível. No entanto, não é o modelo adotado pelo Brasil.
- Tudo isso mostra que o «estado degradado de coisas» engendrado pelo processo estrutural só será válido se for consentido pela Constituição. Será preciso editar uma emenda constitucional que preveja a reestruturabilidade judicial de políticas públicas e instituições. Ainda assim, deve-se prever um manejo comedido do processo estrutural a fim de não se suprimir a separação dos Poderes. À míngua de emenda, as arranhaduras a essa separação devem ser mais do que comedidas: devem ser excepcionalíssimas. Devem-se arquitetar crivos rígidos para que a intromissão do Poder Judiciário na estrutura de políticas públicas e instituições não seja vulgarizada. A práxis jurisprudencial de medidas estruturantes é rara, especial e restrita em todas as partes do mundo. Esse é o genuíno «tratamento mundial de conflitos estruturais». Contudo, para que essa intromissão se torne ampla, geral e irrestrita, os estruturalistas têm se apegado a um pretenso pragmatismo. Nada obstante, tudo indica que ainda não se versaram em ciências pragmáticas, porquanto a ideia que professam padece justamente de um paradoxo performativo. Se esse paradoxo não os incomoda, então a «teoria» que defendem, na realidade, não é bem uma teoria, senão uma estratégia de ação política para o Judiciário usurpar atribuições do Executivo e do Legislativo.


