REGRAS SOBRE DIREITOS FUNDAMENTAIS E REGRAS SOBRE ORGANIZAÇÃO DO ESTADO: UMA SEPARAÇÃO RADICAL?
Se o termo garantia significa a tutela jurídica contra o arbítrio estatal, então a Constituição é uma garantia em si mesma.
Aos 37 anos da Constituição Cidadã
I
Se o termo garantia significa a tutela jurídica contra o arbítrio estatal, então a Constituição é uma garantia em si mesma (sobre a noção de garantia, v. nosso Garantia: dois sentidos, duas teorias. <https://sl1nk.com/IEe4R>). Afinal, a função primordial de uma constituição é a constrição jurídico-normativa do poder político do Estado. Sem embargo, o desempenho dessa função exige do concerto constitucional a articulação estrutural interna entre dois blocos fundamentais: 1) o conjunto das regras jurídicas sobre direitos de defesa dos cidadãos contra o Estado; 2) o conjunto das regras jurídicas sobre a organização do Estado. 1) O primeiro domínio se radica no plano vertical: aos cidadãos são atribuídos direitos subjetivos fundamentais de liberdade, isto é, posições jurídicas subjetivas ativas de status negativus contra o Estado, que lhes propiciam uma esfera de «autodomínio», «autonomia», «participação», «autodeterminação», «espontaneidade», «iniciativa» [= freedom = liberdade em dimensão positiva-ativa], e que lhe asseguram a uma «proteção contra o abuso de poder», uma «ausência de restrição», uma «ausência de intervenção», uma «imunidade ao abuso» [= liberty = liberdade em dimensão negativa-passiva]. 2) Em contrapartida, o segundo domínio se radica no plano horizontal: impõe-se disciplina ao poder político, regulando-se, dentre outras coisas: como ele se trisseca nos subpoderes legislativo, executivo e judiciário; como esses subpoderes se limitam e se controlam de parte a parte; como dentro de cada um deles se distribuem os órgãos, os cargos e as funções; quais são as respectivas atribuições; os requisitos e os procedimentos para que os agentes sejam nelas investidos; como devem elas ser exercidas e como se interrompem, se suspendem e se perdem. É possível haver – e quase sempre há – outros domínios; porém, o conjunto normativo dual formado pelos direitos de defesa do cidadão e pelos pilares organizativos do Estado constitui o arquétipo estrutural invariante do fenômeno constitucional.
II
Como se vê, cada um dos domínios participa, ao seu modo, da garanticidade constitucional. Cada um deles compartilha, no plano que lhe corresponde, do excelso papel de proteger o cidadão de eventual arbítrio do Estado. Se um deles faltar, não se terá uma constituição: um documento que só trate de direitos subjetivos fundamentais de liberdade é tão somente um bill of rights, um rol de direitos, um catálogo de liberdades; um diploma que se circunscreva a organizar o Estado é apenas um regimento interno, uma mera estrutura jurídico-política sem um quê de constitucionalidade. Logo, um domínio se complementa no outro para que ambos existam como integrantes de uma única e mesma constituição. Seja como for, a garanticidade atribuída a cada um desses domínios é parcialmente a mesma e parcialmente diferente. Daí por que entre eles existem semelhanças diferentes: a diferença determina a separação entre os domínios; a semelhança mantém a unidade funcional da Constituição. Contudo, essa separação não é estanque. Há regras sobre a organização do Estado subentendidas no primeiro bloco, do mesmo modo que há regras sobre direitos subjetivos fundamentais de liberdade que se subentendem no segundo bloco. A «semente» de um domínio está sempre presente no outro, impedindo assim que ele exista num estado puro. Cabe ao intérprete constitucional, dessa maneira, a tarefa integradora – embora ainda inconclusa no Brasil – de perfazer a lista dos direitos de defesa do cidadão a partir do segundo bloco, bem como de perfazer a lista das bases da organização estatal a partir do primeiro bloco. Infelizmente, ainda existe aí muita implicitude semântica inexplorada. À vista disso, não vige qualquer relação de primazia entre os dois blocos. Não podem eles submeter-se a uma oscilação excepcional de predominância. Entendimento contrário infligiria absurdamente à Constituição uma ordem hierárquica interna, com «regras constitucionais superiores» e «regras constitucionais inferiores».
III
Conforme cingem o poder político, as regras constitucionais sobre a organização pública não raro se projetam sobre a esfera individual do cidadão, irradiando-lhe posições jurídicas subjetivas ativas acionáveis contra o Estado (pretensões, faculdades, poderes, imunidades etc.). Isso indica que o primeiro domínio não contém um rol exaustivo dos direitos de defesa e que o rol é espessado por algumas regras do segundo domínio. Isso indica, enfim, que os direitos fundamentais de defesa expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos pilares axiais da organização estatal [CF/1998, art. 5º, § 2º]. Como se nota, trata-se da dimensão subjetiva das estruturas objetivo-institucionais do Estado. Ao tratar a advocacia como instituição circunjurisdicional essencial [Título IV, Capítulo IV, Seção III], a Constituição estabelece que «o advogado é indispensável à administração da justiça» [art. 133] e, por isso, deve ser onipresente nos processos em juízo; no entanto, mais do que um componente imprescindível ao funcionamento da mecânica judiciária, o advogado é fundamental para a fiscalização técnica do juiz e, por conseguinte, para a proteção dos cidadãos-jurisdicionados contra eventuais arbítrios do Estado-jurisdição. Nessa perspectiva, consubstancia um direito subjetivo de liberdade individual. Outro exemplo importante são as garantias funcionais da magistratura [art. 95]: conquanto assegurem aos juízes a independência e a imparcialidade necessárias para um exercício funcional soberano, elas são fundamentais para tutelar os cidadãos em juízo contra ingerência externa, perseguição e privilegiamento indevidos, razão por que têm eles direito a um juiz imparcial e independente; não por outro motivo é direito humano previsto, por exemplo, na Convenção Americana de Direitos Humanos [art. 8, 1], na Convenção Europeia dos Direitos do Homem [art. 6º, 1], na Declaração Universal dos Direitos Humanos [art. 10] e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos [art. 14.1]. Aliás, por força do art. 128, § 5º, I, da CF/1988, também se pode sustentar a existência do direito a um promotor imparcial e independente (sobre a imparcialidade do promotor, v. nosso O fundamento do Ministério Público. <https://l1nq.com/NqHA7>).
IV
Por outro ângulo, se os direitos de defesa limitam o poder político, é verdade outrossim que de alguma forma o estruturam, contribuindo para definir os marcos sobre os quais o Estado deve organizar-se e dentro dos quais ele deve funcionar. Noutras palavras, é possível que dos direitos de defesa do cidadão se extraiam pilares essenciais de organização e funcionamento para o próprio Estado. Isso mostra que o segundo bloco não contém um catálogo inteiro dos pilares estruturais da organização pública e que esse catálogo é engrossado por regras contidas no primeiro bloco. Em suma, os pilares de estruturação público-estatal adotados pela Constituição não excluem outros decorrentes dos direitos de defesa nela expressos. Destarte, o § 2º do artigo 5º da Constituição se submete a uma interpretação extensiva: explicitamente, ele prescreve um fluxo desde fora a fim de que o bloco dos direitos de defesa seja completado por outros domínios; implicitamente, prescreve um refluxo desde dentro a fim de que o rol dos direitos de defesa complete outros domínios. Ora, trata-se de uma leitura objetivista dos direitos de defesa do cidadão. Todavia, essa leitura se opõe às doutrinas autoritárias que, sob o pretexto de entreverem uma dimensão objetiva nos direitos fundamentais, concedem ainda mais poderes ao Estado. Na verdade, o sentido histórico dos direitos fundamentais, em qualquer das suas dimensões, é sempre limitar o poder, não o ampliar. Visto que a lei não pode excluir da apreciação judiciária «lesão ou ameaça a direito» [CF/1989, art. 5º, XXXV], subentende-se que a juízes e tribunais compete exclusivamente processar e julgar casos concretos, vedando-se a eles a resolução de situações abstratas, hipotéticas ou conjeturais. Em síntese, proíbe-se que atuem como órgãos de mera consulta. Outro exemplo relevante é o devido processo legal [CF/1988, art. 5º, LIV]: pois que se exige um processo para se privar alguém «da liberdade ou de seus bens», subentende-se que o processo só serve para a imisção estatal em esferas jurídicas subjetivas, proibindo-se-lhe o uso para se interferir na estrutura de realidades jurídicas objetivas, sejam elas institucionais (ex.: ordenamento jurídico), organizacionais (ex.: órgãos e entidades da Administração Pública direta ou indireta) ou operacionais (ex.: políticas públicas). Há, porém, duas e apenas duas exceções constitucionais expressas: o processo legislativo e o processo de controle abstrato de constitucionalidade.
V
Antes de se encerrar, é preciso uma reflexão sobre a separação de poderes [CF/1988, art. 2º: «São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário»]. Ela não está no Título II («Dos direitos e garantias fundamentais»), nem no Título III («Da organização do Estado»), mas no Título I («Dos princípios fundamentais»). Tem, portanto, uma topologia inaugural. Seja como for, posto que tenha fundamentalidade, a separação de poderes não é um princípio jurídico. Não se trata de um «estado ideal de coisas», um «valor-fim», uma «meta moral não compulsória» (sobre a noção de princípio, v. nosso Princípio não é norma. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024, p. 157-162). Com efeito, o artigo 2º da Constituição contém duas regras: 1) uma vez que se haja implementado a figura do Estado [= hipótese de incidência], é obrigatório que ele se divida em três poderes: legislativo, executivo e judiciário [= consequência jurídica]; 2) uma vez que se tenha empreendido a tripartição de poderes [= hipótese de incidência], é obrigatório que eles sejam harmônicos e independentes entre si [= consequência jurídica]. A primeira regra define quais os poderes; a segunda, como devem relacionar-se entre si. De qualquer maneira, a rigor, não se trata de um dos pilares da organização estatal. Na realidade, a separação de poderes é uma fundação para que eles se ergam. Não sem razão, é colocada fora e antes do Título III da Constituição, como premissa para o desenho organizacional do Estado. Independentemente de estar dentro, fora ou nas bordas do domínio organizativo-estatal, a separação de poderes se projeta sobre o domínio dos direitos de defesa do cidadão. O cidadão não pode deduzir em juízo pretensão a um específico esquema de desconcentração de poder. Não existe um direito de cidadania a um governo não concentrado. O que deveras existe é o direito do cidadão de não ter a sua esfera jurídica atingida por ato do Estado que afronte o arranjo tripartite instituído pela Constituição, que transborde os limites fixados para o respectivo poder constituído, que usurpe as atribuições de um outro poder da República. É só nesse sentido que a separação de poderes pode ser invocada em juízo como fundamento de ação ou defesa.
VI
Percebe-se, assim, que a Constituição possui um insuspeito suprassumo. Até hoje ele não foi identificado, isolado, dissecado, analisado e classificado pelos anatomistas da dogmática constitucional. Asseveraram com o dedo em riste que o constitucionalismo liberal estava superado; entretanto, sequer se deram ao trabalho analítico de exauri-lo. Toda constituição possui um compósito elementar e interdominial formado por 1) direitos de defesa do cidadão que geram marcos estruturais para a organização público-estatal, e por 2) marcos estruturais da organização público-estatal que geram direitos de defesa para o cidadão. Mais do que o núcleo liberal de uma constituição, essas duas categorias formam o núcleo liberalíssimo, pois ambas exprimem a noção mesma de garantia em seu sentido mais quintessencial e com a sua potência mais concentrada. Elas escoam, densas, para uma fascinante zona de convergência. Trata-se de uma região deôntica ainda ignorada, malgrado seja ela a οὐσία de toda e qualquer constituição. Que ela seja doravante estudada com profundidade. Não foi o objetivo do artigo presente fazê-lo, senão abrir o caminho.


