UMA TIPOLOGIA DO PROCESSUALISTA BRASILEIRO ATUAL
Nos últimos anos de vigência do CPC/1973, a intelligentsia processual brasileira não mais se reunia em poucas instituições de ensino superior pertencentes ao eixo Sul-Sudeste. Tampouco se juntava em um único instituto, senão em algumas associações de nacionais, regionais e locais, que se multiplicaram após o CPC/2015.
À Jéssica Galvão
I
Nos últimos anos de vigência do CPC/1973, a intelligentsia processual brasileira não mais se reunia em poucas instituições de ensino superior pertencentes ao eixo Sul-Sudeste. Tampouco se juntava em um único instituto, senão em algumas associações de nacionais, regionais e locais, que se multiplicaram após o CPC/2015. À margem do mundo universitário, pôde-se assistir, outrossim, à disseminação discreta de uma processualística outsider de alta qualidade (que, em alguns momentos e em vários aspectos, tem se mostrado superior à processualística insider). Essa multidão de juristas ainda gravita amiúde ao redor da ideia de processo como um «instrumento» do poder do Estado em geral e do Estado-juiz em particular, sobretudo na seara procedimental extrapenal. Nesse sentido, a desconcentração científica não implicou uma heterogeneização ideológica substancial. Posto que as diferentes escolas brasileiras de processo se distingam entre si por algumas singelezas metodológico-conceituais, o pressuposto básico de todas é a mesma: o processo serve mais ao juiz do que às partes [= visão ex parte principis]. É sempre o mesmo tema com variações. Dessa maneira, a força do debate processualístico nacional é ainda fraca, na medida em que orbita ao redor da periferia, não do epicentro. Talvez as únicas e louváveis exceções sejam a Escola Mineira do Processo Democrático e a Escola Brasileira do Garantismo Processual, segundo as quais o processo serve mais às partes que ao juiz [= visão ex parte populi].
Seja como for, decerto há no Brasil de hoje uma diversidade maior de ideias processualísticas. Já se pode constatar um autêntico e genuíno espectro teórico-processual, com faixas e subfaixas que se diferenciam entre si por natureza e graus. Com isso, tem-se uma amostragem suficiente para a elaboração descritiva de uma tipologia dos processualistas nacionais. Enfim, já é possível dividi-los em tipos micro-históricos e, desse jeito, bem compreender a dinâmica funcional da produção doutrinária dentro da sociedade dos processualistas nos tempos atuais (obs.: deve-se falar em sociedade, não comunidade, haja vista que não se trata mais de um grupo coeso, cujos membros comunguem dos mesmos postulados científicos e nos mesmos espaços de interação intelectual, mas de uma soma de grupos rivais e afins entre si, que se aprovam e se reprovam uns aos outros, no todo ou em parte, não obstante por meio de críticas insípidas, inodoras, incolores, raras, insossas e – o pior de tudo – pelas costas, pelos corredores, por cochichos).
II
A definição dos tipos exige um critério. Para se desenvolverem tipos bastante representativos da realidade brasileira, um critério apropriado parece ser a maneira como os juristas lidam no presente com a imperfeição do ramo do direito procedimental ao qual se dedicam (civil, trabalhista, penal comum, penal militar, eleitoral penal, eleitoral não penal, tributário, previdenciário, ambiental, administrativo disciplinar, administrativo não disciplinar, falimentar etc.). Tanto mais perfeito será o procedimento quanto mais espelhe um ideal. Esse ideal pode ser derivado de imperativos jurídicos constitucionais [ex.: regras sobre garantias fundamentais contrajurisdicionais], imperativos jurídicos supraconstitucionais [ex.: regras internacionais sobre direitos humanos], imperativos jurídicos extranormativos [ex.: princípios de direito processual], imperativos normativos extrajurídicos [ex.: normas morais sobre deontologia forense] ou imperativos extranormativos extrajurídicos [exigências econômicas]. De qualquer forma, exige-se um critério objetivo para se julgar como imperfeito o procedimento. A imperfeição pode ser quantitativa [= o modelo procedimental real espelha o ideal, mas não o realiza muito bem] ou qualitativa [= o modelo procedimental real é imperfeito na essência, uma vez que não espelha o ideal].
Ante o exposto, um sistema jurídico procedimental pode ser 1) perfeito, 2) quantitativamente imperfeito ou 3) qualitativamente imperfeito. Portanto, são três os tipos de juristas de que me pretendo ocupar neste pequeno ensaio: 1) aquele que julga o procedimento perfeito e que, por isso, não pretende alterá-lo; 2) aquele que o julga quantitativamente imperfeito e que, por isso, pretende aperfeiçoá-lo; 3) aquele que o julga qualitativamente imperfeito e que, por isso, pretende substituí-lo. Ocupar-me-ei apenas dos traços que caracterizam cada tipo, sem aludir nomes que se enquadrem nele. Meu propósito é desenvolver os rótulos sem rotular quem quer que seja. Caberá a cada leitor fazê-lo, se entender por bem, de modo imaginativo e pessoal. Acredito que, para isso, a tarefa não lhe será das mais difíceis. Mesmo assim, é preciso lembrar que se trata de tipos; logo, entre eles pode haver – e não raro há – zonas híbridas, intermediárias, cinzentas ou ambíguas. Nada impede que no mesmo jurista se mesclem características de dois ou três tipos. Além disso, é possível que, ao longo da sua vida profissional, ele transite entre dois ou três tipos de forma sucessiva ou simultânea.
III
O primeiro tipo de processualista concebe só de modo vago as imperfeições do sistema de direito procedimental. Por isso, ele as aceita, sem força intelectual para aperfeiçoá-las ou construir uma perfeição que as substitua. Sua desambição – por inépcia, indolência ou mero desinteresse – não lhe permite esboçar reações de inteligência contra a imperfeição, levando-o simplesmente a tratá-la como uma «perfeição transitória». Ele sabe que, cedo ou tarde, juristas de maior envergadura mental se encarregarão de corrigi-la. De sua parte, não lhe cabe rejeitar em nada o sistema posto, em nada julgá-lo, porquanto não tem nenhum conceito do que deva ser o processo e, assim, do que devam ser os procedimentos em que ele se desdobra. Compete-lhe analisar, interpretar e aplicar as regras procedimentais como se perfeitas fossem. Foge do seu limiar de intelecção qualquer receio de imperfeição que porventura tenham. Embora empregue com constância a inteligência para analisar, interpretar e aplicar os textos normativos de direito procedimental, nenhum ideal o move, nem explícito nem implícito. Não reverencia qualquer modelo arquetípico de processo e desfaz de qualquer filosofia, ciência, moral, ideologia ou mesmo norma supralegal que o haja inspirado. Rediz passivamente códigos, leis extravagantes, regimentos internos de tribunais, resoluções do CNJ e precedentes, sem questionar se regimentos, resoluções e precedentes são fontes formais do direito procedimental.
Aliás, em tempos tristes de ativismo judicial descontrolado, ele é cada vez mais um mero replicador de teses sobre direito procedimental firmadas em recurso especial repetitivo. Quando se refere a algum vício de inconstitucionalidade da lei procedimental, fá-lo não por força de um juízo crítico próprio, mas porque está expondo um julgado do STF acerca da matéria. Em suma, é uma inteligência que dirige mas não pensa, compreende mas não aprofunda, guia mas não se preocupa. É ele quem mais está próximo aos operários do foro e dele são os principais manuais para o ensino de um direito procedimental que se pretende «esquematizado», «descomplicado», «simplificado» ou «resumido». Não sem motivo, é presença permanente em cursos preparatórios para concurso público e exame da OAB. Note-se que ele é um dogmático, não um pragmático. É inconfundível, portanto, com os instrutores de prática forense, aos quais não se aplica propriamente a alcunha de juristas, malgrado a dignidade do ofício que exercem.
IV
Ao segundo tipo de processualista se adiciona a força intelectual, que ao primeiro falta. Daí por que não é cego para as imperfeições do sistema de direito procedimental. Entretanto, vai só até o ponto de aperfeiçoá-las, tem em conta que elas só lhe parecem localizadas e discretas. Não se lhe mostra necessário construir um sistema substituto inteiro, já que perfeito, de direito procedimental. A fim de que as imperfeições do sistema positivo vigente lhe doam menos, tenta compreendê-lo com intensidade e, a partir daí, aperfeiçoá-lo ponto a ponto, assimilando desde dentro essas imperfeições transitórias no esforço mental de superá-las. Destarte, a sua ambição primordial, em última análise, é acudir o sistema, não o trocar. Sem embargo, para desempenhar essa missão salvífica com responsabilidade, espera-se dele que domine o sistema positivo vigente, do alfa ao ômega, a fim de que as suas propostas de aperfeiçoamento não avariem a coerência global. Noutras palavras, dele é esperada a obtenção de um conhecimento procedimental enciclopédico. Ao redor desse enciclopedismo se cria uma elite universitária orgulhosa de si, que supervaloriza títulos acadêmicos, artigos em periódicos científicos indexados, normas técnicas para a elaboração de textos, grupos de pesquisa certificados etc.
No específico caso brasileiro, esse conhecimento implica adquirir uma erudição ítalo-germânica (na verdade, muito mais itálica que germânica) e, em especial no âmbito procedimental civil, catequizar-se em uma perspectiva inquisitivo-instrumentalista, ignorando a concepção acusatório-adversarial da escola anglo-americana. Pior: implica virar as costas para uma tradição luso-brasileira de quase cinco séculos, mal acusada de «pré-científica», porque «praxista» (conquanto o praxismo português haja sido mais científico do que supõem aqueles que, sem o conhecer, o desprezam). Quase sempre, o procedimento ideal é derivado de um modelo de processo alegadamente constitucional, que trata os direitos fundamentais como princípios e os princípios como normas (quando não inventa «princípios de direito fundamental» ex nihilo). Ademais, vale-se de um truque de mestre para converter a cláusula constitucional do devido processo legal em uma «teoria do processo justo» sem supedâneo metaético mínimo. Essa constitucionalística inusitada é capaz de justificar qualquer coisa, inclusive a própria visão inquisitivo-instrumentalista em suas diferentes correntes (instrumentalidade dinamarquiana, formalismo valorativo, neoprocessualismo, cooperativismo processual etc.).
V
O primeiro e o segundo tipos varrem a quase totalidade dos processualistas brasileiros. No entanto, esse «quase» é deveras quase nada. Só há pouco se tem visto o surgimento do terceiro tipo. Ainda assim, é improvável que no futuro ele cresça em número. O seu caráter condeno-o à raridade. Caso seja um outsider, estará fadado a solidão ou pequenos círculos; caso seja um insider, será «o» excêntrico do departamento de direito processual de uma grande universidade, cercado de uma plateia discreta de orientandos e admiradores. Hoje, talvez só entre os autores da Escola Brasileira do Garantismo Processual e da Escola Mineira do Processo Democrático se possa encontrar o protótipo exato desse jurista. Sem qualquer pretensão de aperfeiçoamento do sistema posto, tendo em vista a sua preocupação severa com a perfeição absoluta, ele aplica o seu ideal, substituindo o direito procedimental essencialmente imperfeito por um modelo que ele próprio desenvolveu e que se aproxima mais do que lhe parece perfeito.
No procedimento ideal da primeira escola, os critérios de processamento e julgamento são pré-estabelecidos desde fora do processo [ab extra et ante causam], pelos representantes do povo, congregados em assembleia legislativa e escolhidos por eleições regulares, justas e livres [= processualismo de democraticidade indireta]. Isso transforma o garantismo em uma doutrina marcada pelos signos do realismo, do ceticismo, do positivismo, do dogmatismo e do legalismo. A segunda escola, por seu turno, propõe um ideal procedimental cujos critérios, pós-estabelecidos desde dentro do processo [ab intra et post causam], são debatidos de forma aberta e desimpedida pelo próprio povo como parte no processo [= processualismo de democraticidade direta]. Daí por que se trata de uma doutrina muito mais idealista, otimista, antipositivista, antidogmático e antilegalista (sobre essas duas escolas, v., por exemplo, nosso Processo democrático: dois modelos. <https://encurtador.com.br/r05ZV>). Em todo o caso, ambas as doutrinas abjuram os sistemas procedimentais positivos vigentes no Brasil e, por essa razão, têm a pretensão de substituí-los. Ao fim e ao cabo, em maior ou menor grau, todos eles se inspiram na ideia autoritária e anacrônica de processo como «instrumento, ferramenta, utensílio ou método a serviço da jurisdição»; à vista disso, em maior ou menor grau, admitem que o juiz interfira de ofício nos critérios de processamento e julgamento [= judicialismo aristocrático].
VI
Pois que em tudo rejeita o sistema posto, dado que inquisitivo-instrumental em essência, o terceiro tipo de processualista sofre de uma certa inadaptação estrutural às diretrizes constitutivas do meio político-institucional em que habita: as diretrizes lhe soam distorcidas; o meio, em consequência, degradado. Ora, essa inadaptação é o elemento predisponente – se bem que, por isso mesmo, radical – do seu processualismo. No caso da primeira escola, trata-se de um «radicalismo conservador», que no grão-debate sobre a fundação norte-americana muito se assemelha às ideias de MADISON; no caso da segunda escola, o que se tem é um «radicalismo democrático», que às ideias de JEFFERSON muito se parece. Seja como for, nem uma nem outra escola ficam presas ao sistema de direito procedimental vigente atual. Afinal, para substituí-lo, é conditio sine qua non jamais se atar a ele. Por conseguinte, o terceiro tipo de jurista vive o seu próprio sistema e se entretém apenas com a sua respectiva ordem de problemas, sem se importar muito com o pensam sobre ele. Logo, não reage ao sistema posto, senão para substituí-lo.
Isso significa que, para se aderir às suas ideias ou para criticá-las, é imprescindível sair do que está posto e compreendê-las desde dentro. Manter os pés naquilo que está aí posto implica: para quem deseja aderir ao sistema substituto, fazer dele uma caricatura; para quem trama criticá-lo, um espantalho. Todavia, visto que é difícil sair, é difícil criticar o pensamento do terceiro tipo. De maneira geral, ele causa estranhamento aos tipos um e dois, que, quando muito, o tateiam no escuro com mãos trêmulas e incertas, qualificando-o de «neoprivatista» (quando se trata de um autor da primeira escola) ou «obscuro» (quando se trata de um autor da segunda), sem que consigam entender-lhe bem as premissas e a abordagem metodológica. Em um certo sentido, isso confere ao jurista do tipo três um poder extraordinário, pois ele se pendura em cordas inalcançáveis pelos demais processualistas. Não lhes é possível cortá-las, exceto se se penduram também nelas, ainda que de forma temporária (o que a popularidade e o orgulho enciclopédico-procedimental não lhes permitem). Diante dessa ultrajante impotência, resta-lhes, porquanto em número muito maior, boicotar do debate público o terceiro tipo. Afinal de contas, não lhes convém discutir com quem refuta de A a Z o que pensam. A crítica sistêmica é sempre mais embaraçosa que a pontual.